De um lado um grito de dignidade; do outro a surdez e o
manobrismo irresponsável do costume.
A senhora Merkel e o senhor Hollande responderam à
declaração clara e transparente do povo grego de que não aceitam continuar a
pagar com austeridade mortal os erros que não lhe podem ser assacados, assumindo
que é preciso respeitar a vontade manifestada nas urnas. No entanto, o
espectáculo que as instituições europeias estão a dar no arranque do
pós-referendo, e ainda a procissão vai no adro, é o de um circo de manobras e
declarações onde se percebe tudo menos o desejo de respeitar a mensagem grega.
Isto é, no seu formalismo habitual, os chefes do Directório
que dá ordens na União Europeia proclamaram o respeito pela democracia; e logo
os seus subordinados voltaram ao mesmo comportamento chantagista, com destaque
para o inenarrável socialista holandês Djesselboem, que chefia a Zona Euro –
uma espécie de pau mandado do senhor Schauble às ordens dos especuladores
financeiros - em cujas declarações apenas se lê um desejo de vingança e de
ajuste de contas contra os gregos. Entretanto, em segundo tempo, a senhora
Merkel contradiz o que declarou poucas horas antes advogando que “ainda não há
condições para recomeçar as negociações entre a União Europeia e a Grécia”. Por
outras palavras, quiseram democracia e agora esperem para dançar a música que
nós tocamos.
O ministro grego Varoufakis terá sido uma das primeiras
vítimas deste manobrismo, a acreditar na versão oficial de Atenas. Não custa
nada perceber, relendo declarações proferidas por alguns dirigentes europeus,
que o afastamento do ministro que não se arrojava aos pés dos mandantes
europeus e do FMI às ordens dos credores seja uma das condições impostas para o
reinício das negociações. Os senhores da Europa, que chamam terroristas a quem
lhes aprouver e convenha, estão muito indignados por o senhor Varoufakis lhes
ter chamado terroristas a propósito da campanha de intimidação, medo e terror
que montaram para que os gregos respondessem sim à austeridade. Afinal não é de
Varoufakis que pretendem vingar-se, é dos gregos, contra quem o terrorismo não
funcionou.
No domingo, a povo grego não se limitou a reabilitar a
democracia como instrumento ao serviço de todos os europeus – assim o saibam
aproveitar liquidando, país a país, a ditadura do chamado arco da governação.
Os gregos reabilitaram também o direito à dignidade e, para
isso, derrotaram a monstruosa campanha de propaganda local, com ecos mundiais,
que a si mesma se chama comunicação social; derrotaram a chantagem contra a
democracia emitida de Bruxelas, prometendo o caos no caso de o não vencer;
torpedearam o terrorismo do Banco Central Europeu, que tentou criar a anarquia
nos bancos gregos seguida de um esvaziamento dos cofres através da fuga de
capitais em massa; por fim, derrotaram ainda as sondagens – não nos esqueçamos do
papel nefasto destas contra a democracia – que prometeram um “empate técnico”
até ao derradeiro instante num referendo em que as duas partes ficaram, afinal,
separadas por um fosso superior a 22 pontos percentuais. Isto é não “margem de
erro”, nem “engano”, nem fruto de “situações imprevisíveis”. Isto foi, sem
qualquer margem de erro, uma burla.
Ao darem um tão sonoro grito de dignidade, os gregos vão
precisar de ser firmes e de contar com a solidariedade dos outros povos
europeus vítimas desta tragédia, porque o contra-ataque vai ser terrível. Não é
possível pagar a dívida grega e não é por isso que existe qualquer legitimidade
em chamar caloteiros aos cidadãos da Grécia em geral. Em primeiro lugar, as
dívidas renegoceiam-se, reestruturam-se de maneira a que seja criadas condições
de crescimento económico e de funcionamento pleno das economias para que possam
ser amortizadas.
Além disso, não são os gregos em geral, e entre eles as
maiores vítimas da austeridade, os responsáveis pelo estado calamitoso a que
chegou a dívida soberana do país. Os vícios de corrupção, nepotismo, evasão
fiscal, de viver acima das possibilidades são fruto de décadas de governação
desempenhada pelas duas famílias políticas que formaram o arco da governação,
agora desfeito na Grécia – socialistas (PASOK) e direita - em conluio com os
bancos nacionais e internacionais, entre eles o famigerado Goldman Sachs, como
se sabe. Foram elas que fizeram chegar a dívida a 120 por cento do PIB, quando
soaram as campainhas de alarme, e que depois disso, rastejando perante Bruxelas
e a troika, se submeteram a um memorando de “ajuda” que a fez trepar, até
agora, para 170 por cento do PIB.
O primeiro ministro de Portugal em exercício disse, a
propósito da Grécia, que não se pode ajudar quem não quer ser ajudado. Está a
ver o filme ao contrário, tal como lhe acontece em relação a Portugal: a Grécia
(e os outros países assim submetidos) não têm recebido ajudas, têm sido
assaltados e saqueados. Os gregos limitaram-se a dizer, pela segunda vez em
seis meses, que não querem continuar a ser roubados.
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