Poderia ter acontecido em Portugal, na Estónia, em Itália, em
qualquer outra nação da tão democrática e incorruptível União Europeia, mas
desta vez foi em França. Poderia ter sido obra de uma gestão da direita, de uma
administração socialista, mas desta feita o desprezo por bens públicos e a
reverência ante os mais poderosos do dinheiro é obra conjugada das duas
ideologias fundidas na ideologia do lucro, interpretada por verdadeiros bandos
de malfeitores.
O caso desenvolve-se à volta da frequência audiovisual
analógica terrestre no canal 23, entregue gratuitamente pelo Estado francês
para criação da TVous Diversité, que logo mudou de nome para Numero 23 e vai
cair agora nas mãos do terceiro homem mais rico de França, um dos donos de L’Express,
Libération e respectiva irmandade sob o nome de Next RadioTV (por enquanto).
Pela história passam nomes ligados às administrações Sarkozy e Hollande,
ex-ministros e ex-conselheiros presidenciais, um oligarca russo cujo dinheiro chegou
a Paris via Chipre, dirigentes e funcionários dos partidos do chamado “arco da
governação”.
As frequências audiovisuais são bens raros e públicos, que
deveriam ser geridos pelos Estados – como representantes dos cidadãos – ao serviço
da informação, cultura e diversão destes. Sabemos que entre a teoria e a
prática vai uma longa distância nas sociedades que se dizem modernas; ainda
assim, a situação é tão escandalosa que não merece ir para a conta das
indiferenciadas.
Em Julho de 2012, o Conselho Superior do Audiovisual de
França, organismo estatal que gere as frequências de rádio e televisão,
entregou o canal 23 a uma candidatura encabeçada por um lobista da fina flor do
capital parisiense, Pascal Houzelot, que surgiu em cena acompanhado por Valérie
Bernis, ex-colaboradora do ex-primeiro ministro Balladour e ocupando uma
posição de topo na administração do império GDF Suez; e David Kessler, um
gestor de vários e conhecidos meios de comunicação trabalhando então na campanha
eleitoral de Hollande, de onde transitou para conselheiro de comunicação social
do novo presidente. O projecto por eles apresentado, a TVous Diversité, uma
televisão “aberta ao mundo e às outras culturas”, segundo as palavras de
Kessler, mereceu desde logo os maiores encómios da comunicação agindo como
propaganda bem-falante.
A frequência foi entregue gratuitamente à candidatura
encabeçada por Houzelot, a qual, quase sem se dar por isso, passou a chamar-se Numero
23, deixando de lado não apenas a designação TVous Diversité como a própria
multiculturalidade. Além de congregar parte da casta financeira parisiente em
torno do seu projecto, Pascal Houzelot – que sempre navegou bem tanto em
gestões socialistas como de direita – contou ainda com o apoio financeiro do
oligarca russo Alicher Uzmanov, a 71ª fortuna mundial pelas contas da revista
Forbes. Para que os trâmites decorressem de acordo com as normas europeias, o
dinheiro russo foi previamente lavado em Chipre.
Exactamente dois anos e meio depois, o período estabelecido
por lei para que seja possível a transferência de mãos de uma frequência
audiovisual, a Numero 23 foi vendida ao grupo Next RadioTV de Alain Weill
(Radio Monte Carlo Info, por exemplo) por 88,5 milhões de euros, 48,5 milhões
dos quais em dinheiro vivo, nos termos de um negócio acordado muito tempo antes
e que apenas esperou pelo período de nojo imposto por lei para ser anunciado.
Isto é, o projecto TVous Diversité, recebido gratuitamente das mãos do Estado
francês, rendeu 88,5 milhões limpos aos seus financiadores, sendo que Pascal
Houzelot transitou directamente para a administração da Next RadioTV.
Ao revelar a venda, Houzelot argumentou que optou pelo
negócio com Alain Weill por ser um “grupo independente” entre os tubarões da
comunicação social. Porém, ainda as assinaturas do contrato estavam frescas e
já a Next RadioTV passava para as mãos de um desses tubarões, Patrick Drahi, a
terceira fortuna de França, que a engolirá gradualmente até 2019. Drahi
representa um conglomerado onde avultam nomes como a Societé Française de
Radiofusion (SFR), L´Express, Libération, Strategies e mais uma dúzia de
revistas, os serviços por cabo Numericable, vários meios de comunicação e uma
empresa de telefones móveis israelitas.
Assim se vão partilhando os lucros obtidos através de
um bem público que o Estado francês, supostamente em nome dos cidadãos, alienou
sem nada obter em troca a não ser – na verdade está aqui o grande segredo da
teia de perversidades – a garantia de poder contar com um aparelho de
propaganda ao serviço de um falso pluralismo transformado em ideologia única e
absoluta.
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