A hipocrisia assaltou definitivamente os ecrãs portugueses. O
que tanto se denunciou sobre os desvios impostos ao regime democrático no
sentido de neutralizar o funcionamento dos mecanismos de respeito pela vontade
e os interesses dos cidadãos, e que, de acordo com a propaganda oficial, não
passava de opiniões de marginais do sistema, de antieuropeístas, quiçá de
terroristas encapotados, está confirmado. Não era teoria da conspiração, era a
demonstração do que se pretendia e pretende atingir com a mascarada de
democracia apresentada como a democracia única, possível e desejável, afinal um
regime em que a soberania nacional e a maioria das pessoas têm de submeter-se
aos interesses minoritários dos predadores da sociedade, dos parasitas dos
cidadãos.
Bastaram umas eleições e umas sessões de diálogo – esse diálogo
tão enaltecido quando não passa de monólogo em que finge falar-se do que já
está decidido – para que a inquietação, os medos, no fundo as pulsões
antidemocráticas e trauliteiras subissem ao palco. Elas aí estão, ridículas nos
conteúdos, perigosas nas intenções, intimidatórias na prática.
Cito alguns exemplos ao acaso porque a memória e a capacidade
de registo não conseguem acompanhar a criatividade dos canais de propaganda do
regime os quais, como é sabido, são o suprassumo do pluralismo desde que ele
seja monolítico e esteja sintonizado com os agentes de Bruxelas, os seguranças
dos credores, os magarefes dos mercados.
Na cegada desfilam politólogos e comentadores independentes
que, por acaso, ocupam ou ocuparam altas posições no chamado arco da
governação, analistas e papagaios amestrados, comentadores, jornalistas ditos
de referência e recadeiros, enfim a corte dos bobos que conseguem especular
horas a fio sobre supostas variantes de um mesmo cenário, o único, o permitido,
aquele de que vivem e que por sua vez alimentam, num ciclo vicioso e viciado.
Assim sendo, António Costa transformou-se num “radical” com
tendências “suicidárias” ao aceitar que o PS dialogue com o PCP e o Bloco de
Esquerda. Portugal deve ser governado pelo grupo que teve mais votos, mesmo que
seja em minoria, devendo os outros membros do Parlamento fazer de patetas. É
assim a “tradição política”, a mesma “tradição” que proíbe a entrada de
partidos à esquerda do PS na área governativa, porque isso “não está no ADN” da
democracia portuguesa. Partidos esses, como o PCP e o Bloco de Esquerda, que
foram acusados de se esquivarem a assumir responsabilidades governativas e que,
quando manifestam essa disponibilidade, são acusados se meterem onde não são
chamados, de acordo com a bem conhecida trama de morto por ter cão, morto por
não ter. E atenção que isto da “tradição” é muito importante em Portugal, sobretudo
a “tradição” que manda o bom povo ser ordeiro e marchar em rebanho.
Além disso, e a cegada continua, fiquem sabendo que uma
minoria de 107 deputados é muito mais estável e responsável que uma maioria
absoluta de 122, susceptível de viabilizar um governo à esquerda da clique da
troika; maioria esta que não passa “de uma coligação negativa”, formada à
partida por imbecis mal-intencionados e incapazes sem legitimidade porque, por
exemplo, não aceita a austeridade nem dá como plenamente adquirido que os
portugueses sejam governados de Bruxelas pelos credores e o sobe-e-desce dos
juros da dívida e das manipulações estatísticas. Vejam bem, que legitimidade
teria essa maioria se porventura se questionasse sobre o tratado orçamental, manobra
suja de Bruxelas e Berlim escamoteada aos cidadãos e que transforma os países
da União em pobres protectorados de uma Alemanha expansionista e das praças
financeiras? Como seria possível admitir um governo de Portugal capaz de
governar para as pessoas, segundo os interesses de Portugal e dos portugueses,
quando o que interessa são números, cifrões, milhões manipulados pelo casino
financeiro mundial e armazenados em paraísos fiscais?
A austeridade provoca miséria, desemprego, emigração? Pois é,
mas não existe outra saída, mesmo que as eleições tenham dito claramente que os
portugueses a rejeitam, porque Bruxelas é que sabe o que é bom “para o futuro
dos portugueses”, como esse futuro ficará ainda mais risonho estraçalhando o
Estado social e a segurança social; e se Bruxelas manda, assim seja. Para lhe
obedecer existe a minoria que desejavelmente deveria assumir-se como maioria em
forma de “bloco central”, esse partido único garante da democracia da
austeridade. Mas se assim não for, que essa minoria governe com a “estabilidade”
e a governabilidade” que lhe são inerentes, capaz de ressuscitar em versão
actualizada a “democracia orgânica”, uma inspirada criação da propaganda
marcelista, não a de hoje, a de ontem. Fora desse quadro, como por exemplo a
hipótese de um entendimento entre PS, Bloco de Esquerda e PCP, que permitiria
governar Portugal com maioria parlamentar e para a maioria dos portugueses,
seria um “absurdo”, uma “batota política”, “um mergulho no desconhecido”; a “instauração
da miséria”, uma “irresponsabilidade antieuropeísta”, um “pandemónio
ingovernável”, uma “aberração”, uma “vergonha nacional”, um alvo da “chacota
internacional”, “mudar as regras a meio do jogo”, “uma conspiração”, um “delírio”,
a “restauração do gonçalvismo”, até “um golpe de Estado” – como se percebe nem
o céu será o limite para a criatividade chantagista.
Tombam as máscaras dos democratas oficiais, os que sabem
corrigir o regime dos enganos dos eleitores para defesa dos interesses dos
próprios eleitores, uns pobres idiotas incapazes de saber o que é bom para
eles.
TOMBAM AS MÁSCARAS DO REGIME
ResponderEliminar...entretanto, o PS continua "em cima do muro"
ResponderEliminarem equilíbrio instável e com uma máscara
que não lhe deixa (ainda) ver a cara