As eleições
gerais de domingo em Espanha foram um acontecimento histórico. Observamos
politólogos, comentadores, analistas, especialistas e outros entendedores com a
cabeça à roda perante tamanha “confusão” provocada pelos eleitores; vemos a
bisonha saga dos jornalistas habituados ao sossego da ditadura do “bloco
central” agora tontos e à deriva sem saberem como vai sobreviver Espanha a um
cenário político à “antiga italiana”. E que dizer dos mandantes de Bruxelas,
coitados, ainda agoniados com a reviravolta grega, depois engasgados com o “estranho”
governo português, já a contas com um problema que jamais pensariam vir a
preocupá-los, como o de haver uma expressão democrática reclamando plurinacionalidade?
Será quem seu redor tudo está a ruir?
Pois bem, os
cidadãos das nações e comunidades de Espanha disseram não ao “bloco central” e
afirmaram agora no local próprio, as urnas, o que há muito se intuía: que os
arranjos resultantes da transição política do franquismo para a monarquia
parlamentar já não funcionam. Falta ainda a afirmação plena republicana como
formato a assumir pelo Estado, mas essa discussão será inerente, também, ao
profundo debate que os resultados desta consulta eleitoral vai suscitar.
É verdade
que o quadro parlamentar resultante das eleições não permite, à partida,
encontrar um governo maioritário, nem minoritário. Os eleitores insistiram
ainda em manter os neofranquistas de Rajoy como os mais votados, apesar do
desemprego, da subserviência aos mercados e da surdez às exigências populares,
mas reduziram-nos a 28,7% e retiraram-lhes 63 deputados, deixando-os a 53 da
maioria para governar. Os seus parceiros naturais, a direita envergonhada que
dá pelo nome de “Cidadãos”, não foram além de 40 eleitos e, depois disso,
olhe-se para onde se olhar, para cada recanto do novo Parlamento, e não há
maneira de descobrir os 13 votos necessários para a maioria. Poderiam ser, hipoteticamente,
os 8 da Democracia e Liberdade da Catalunha (antiga Convergência y Unió) e os 8
do Partido Nacionalista Basco, mas a forma como Rajoy e as suas clientelas ultrajaram
as Autonomias veda liminarmente essa solução. Quanto a eventuais acordos com os
socialistas do PSOE (90 deputados, mas menos 20 que em 2011), ou os emergentes
Podemos (69 deputados), ouvindo os respectivos dirigentes nem deve perder-se
tempo a conjecturá-los, pois ambos dizem rotundamente não a uma viabilização de
um governo do PP de Rajoy.
Segundo a
Constituição, o rei Filipe vai agora ouvir os partidos e indigitar um nome para
chefe do governo, o qual deve formar uma maioria ou então garantir uma minoria
que funcione através de abstenções e acordos pontuais. Se o primeiro nomeado
não conseguir qualquer das soluções segue-se um segundo, e assim sucessivamente
durante um máximo de dois meses. Se nada for solucionado até lá, marcam-se
novas eleições.
Rajoy
poderia teoricamente conseguir até a colaboração de “Cidadãos” para um governo
em minoria, mas a maioria contrária existente no Parlamento inviabilizaria essa
hipótese.
Há, de
facto, uma maioria possível, embora politicamente muito delicada e trabalhosa.
Ela implicaria a programação de alterações de fundo no formato do Estado, de
forma a reflectir o carácter plurinacional do país. Resultaria da junção dos
votos das esquerdas (PSOE, 90; Podemos, 69; Esquerda Republicana da Catalunha,
9; Euzkadi Eskerra – Bildu, 2; e Esquerda Unida, 2, num total de 172), com os
dos partidos autonomistas (Partido Nacionalista Basco, 6; e Coligação Canária,
1, num total de 7). Estes 179 votos seriam suficientes para garantir um governo
maioritário, que exige 176.
Para se admitir
esta hipótese há que ter em conta a certeza de que nada poderá ficar na mesma no
que diz respeito às relações institucionais entre Madrid e as Autonomias. Isto
é: torna-se necessário reconhecer o direito dos povos de Espanha a decidirem
livremente o seu futuro. Os excelentes 21% obtidos pelo Podemos não se devem
certamente à pobreza da sua base programática ambígua, indefinida e
ideologicamente caótica. O seu êxito esteve na clareza elementar com que
colocou perante os eleitores a questão plurinacional do Estado Espanhol e a
necessidade de este corresponder à vontade dos povos de Espanha a expressar
numa nova Constituição, capaz de enterrar o carácter centralista da “transição”.
Repare-se que o Podemos foi o partido mais votado na Catalunha e no País Basco
e foi o segundo nas comunidades de Madrid, Valência, Galiza, Baleares, Canárias
e Navarra. O verdadeiro segredo do Podemos foi o de defender que devem ser
admitidos referendos vinculativos nas comunidades sobre o seu futuro
relacionamento com Madrid.
O PSOE,
porém, recusa-se a admitir este passo entre o passado e o futuro, hipotecando,
portanto, a única hipótese de governo maioritário e declarando-se – para já – confortavelmente
instalado numa situação de oposição. No entanto, depressa perceberá que esta
posição passiva poderá trazer-lhe danos políticos irreparáveis a longo prazo.
Ao contrário
do que tanto se apregoa, como uma terrível tragédia institucional, o que agora
não há em Espanha, depois das eleições de domingo, é confusão política,
impossibilidades aritméticas, uma “Itália à antiga” ou ingovernabilidade. Nada
disso. O que está em cima da mesa de autópsias, para remoção, são os restos
putrefactos do franquismo, que têm de ser enterrados de vez e dar lugar à nova
Espanha como país reflectindo a sua mais rica realidade: a diversidade nacional.
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