Ao contrário das aleivosias debitadas pelos escribas de
serviço aquém e além-fronteiras, o que se passa com a Grécia não é uma “tragédia
grega”, é um processo de deriva da União Europeia que envolve todo o continente,
porque um abalo como este não reconhece fronteiras.
E por muito que se busquem bodes expiatórios, habilidade que
serve recorrentemente para fugir à essência dos problemas, a culpa não é
inteirinha do senhor Schauble, ou da senhora Merkel, ou da senhora Lagarde, ou
do senhor Juncker, de todos juntos ou das supostas intransigências dos senhores
Tsipras ou Varoufakis.
O que se passa com a Grécia é o fracasso rotundo do chamado “projecto
europeu”, da moeda única, da estafada lenga-lenga do espaço comunitário “democrático
e solidário”. Não se venha igualmente com o argumento de que estes políticos
não prestam, bons sim eram os “pais fundadores”, todos eles homens de Estado
cheios de boas e nobres intenções, muito amigos dos pobres e desvalidos.
Tretas.
A União Europeia, se é ou foi um “projecto”, nasceu
inquinado, proclamou como objectivos mirabolantes aquilo que nunca passou de
propaganda, enquanto a realidade era outra. A Comunidade Económica Europeia - e
os seus sucessivos arranjos - nasceu e desenvolveu-se como uma forma de
reorganização do capitalismo e da exploração do trabalho na Europa, como
instrumento da guerra fria, a par da NATO. E foi em paralelo com este braço
armado que enveredou pela lógica sociopata do neoliberalismo quando teve
condições para isso, a seguir ao descalabro soviético. Ao ritmo frenético,
eufórico, sem freios imposto pela anarquia própria do casino financeiro, a
Comunidade foi queimando etapas, cresceu como um monstro sem consolidar esses
supostos avanços, convenceu-se da impunidade absoluta e chegou aonde não
contava chegar, fiada na eficácia do rolo compressor: ao momento em que o rei
vai nu. Se ele tem a cara de Scheuble, ou Merkel, ou Lagarde são pormenores.
Não são seres isolados, como Hitler não era um lunático sozinho. Por detrás
deles espreitam os de sempre, neste momento muito, mas mesmo muito mais fortes
que há sete décadas, assentes em suportes tecnológicos de capacidades
incalculáveis, na concentração monopolista e monstruosa de marcas e empresas,
na universalização ditatorial do mercado, na dimensão global do casino
financeiro, que especula ao segundo com muito mais riqueza virtual do que a
real, a que resulta de actividades produtivas.
A Grécia é o grãozinho na engrenagem que chegou contra a
corrente e se transformou num enorme pedregulho. Afogada por uma crise que se
arrasta, a União Europeia vê-se perante um inesperado frente-a-frente, um risco
que julgava ter banido durante a triunfal cavalgada: o ajuste de contas entre a
democracia e a gula sem limites do império económico-financeiro, representada
pela tropa de choque dos seus agiotas.
Tratados como escravos, verbos de encher, peões descartáveis
da estratégia da especulação que tem na União Europeia germanizada o seu braço
político operacional no continente, os gregos mostraram, quando não se esperava
e para surpresa dos carrascos financeiros, que o que ainda resta da democracia
pode servir para furar o cerco do arco da governação.
Este frente-a-frente, uma espécie de duelo de David contra
Golias, pode ter até o resultado que ficou inscrito na lenda. Basta que a
Grécia não ceda e poderá chegar o dia das surpresas. Sair do euro não é, para
os gregos – e assim seja igualmente para o seu governo –, uma mera questão de
dignidade. Apesar das dúvidas que existem quanto às consequências, será um mal
menor em que terão de contar – isso diz-nos respeito a todos – com a
solidariedade activa dos povos do mundo e dos governos não sintonizados com o
poder imperial. A cedência, pelo contrário, seria um revés para a resistência
democrática que sobra, o triunfo exemplar à escala europeia da ditadura do arco
da governação e dos agiotas que a teleguiam.
A saída da Grécia do euro será como tirar uma pedra da base
de um castelo que parece imponente, assustador, soberbo, inexpugnável e que a
partir daí se desmoronará sem apelo, apurando-se que fora construído sem
alicerces nem argamassa. Não bastará dizer que a União Europeia nunca mais será
a mesma. O mais certo é, mais-dia-menos-dia, é a União Europeia deixar de o
ser. O que para os povos, verdade seja dita, não será nenhuma tragédia.
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