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terça-feira, 23 de agosto de 2016

SILAS CONTINUA ENTRE NÓS


 

Silas Cerqueira desapareceu ontem fisicamente do nosso convívio.
Fica muito mais pobre o panorama da luta pela paz em Portugal e no mundo. A paz, essa coisa já de si anacrónica e que, de acordo com a ordem imposta, é algo que se alcançará generalizando a guerra, a dominação, a rapina. Silas estava nos antípodas.
Silas Cerqueira bateu-se pela paz genuína, a que nasce do repúdio pela guerra, pelas desigualdades, pela injustiça social, pela exploração da mulher e do homem. Por isso, o desaparecimento de Silas Cerqueira é algo que não diz respeito aos media sempre tão bem informados deste país, não merece ser do conhecimento dos portugueses.
Silas Cerqueira era um homem de princípios e convicções, características também caídas em desuso. Tive o privilégio de lhe fazer a primeira entrevista depois do regresso do exílio em Paris, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, porque na chefia de A Capital havia quem soubesse da existência de Silas e da sua luta, mesmo que não se identificasse com todas as suas posições cívicas. Era outro jornalismo, eram outros jornalistas. Nessa entrevista Silas Cerqueira anunciou os projectos da luta pela paz em Portugal protagonizada pelo Conselho Português para a Paz e Cooperação, instituição que nascera na clandestinidade. Porque a luta pela paz era proibida no Portugal fascista. Hoje não é ilegal, está apenas condenada à surdez oficial, ao desprezo, à calúnia.
No entanto, a obra de Silas Cerqueira e do Conselho Português para a Paz e Cooperação é algo de que Portugal se deve orgulhar porque, ainda que apenas tolerada de início, e hoje completamente ignorada, projectou o país no mundo e foi determinante para alguns acontecimentos que marcaram a vida internacional.
As conferências internacionais sobre a Palestina e a África Austral promovidas pelo Conselho da Paz em Portugal, sob o impulso dinâmico de Silas Cerqueira, trouxeram esses problemas para a arena internacional quando Yasser Arafat e Nelson Mandela não passavam de “terroristas” para os dirigentes mundiais, incluindo os da União Europeia. Em Portugal poderiam ser encontradas excepções por exemplo nas pessoas dos ex-presidentes Costa Gomes, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e da ex-primeira-ministra Maria de Lurdes Pintasilgo. Foi o Movimento Mundial da Paz, de que Silas Cerqueira era alavanca poderosa – embora preferisse a discrição pessoal – quem levou Yasser Arafat à Assembleia Geral das Nações Unidas erguendo o seu ramo de oliveira; foi o Movimento Mundial da Paz que nunca deixou cair a luta pela libertação de Mandela, até ao dia mágico em que ela se concretizou e os que o cognominavam “terrorista” se tornaram, por encanto, os seus maiores admiradores e aduladores.
Até ao momento em que as suas imensas faculdades lhe permitiram, Silas Cerqueira não deixou de se bater pelas causas da paz, da justiça e legitimidade internacional, pelos direitos inalienáveis dos povos que lhes continuam negados como no Sahara Ocidental, na Palestina, nas áreas curdas; contra o racismo e as várias formas de apartheid, com realce para o mais criminoso em acção – o israelita. Enquanto as forças lhe permitiram, nem por um momento deu tréguas à denúncia das situações vergonhosas criadas com o chamado “processo de paz” israelo-palestiniano e com as guerras no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, no Iémen, na Síria, no Mali, em tantos outros lugares do mundo.
Silas Cerqueira deixa-nos fisicamente. Portugal, o seu país, não sabe quem foi, mas nem por isso que o legado que nos deixou é menos precioso e motivador. O Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), o MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente – que ele ajudou a fundar, numerosas associações locais e de jovens contra a guerra espalhadas pelo país, um conjunto vasto de cidadãos seus companheiro e dispostos a prosseguir a sua luta têm agora sobre si a enorme responsabilidade e o orgulho de continuar o trabalho de Silas Cerqueira. A sua determinação, a dedicação sem tréguas, a disponibilidade para a paz e a sua confiança no êxito do caminho seguido são, porém, muito difíceis de igualar. Cabe-nos também essa tomar em mãos essa missão, por impossível que pareça.
Até sempre Camarada Silas Cerqueira.
 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O ESTADO DO MUNDO NÃO É UM GOLPE DE AZAR


 

Poucas situações geram um tão elevado número de opiniões coincidentes como a do estado desgraçado em que o mundo se encontra. Exceptuando os donos da opulência, poucos em número embora soberanos no poder, os tolos que argumentam com um optimismo incurável enquanto o sangue da tragédia humana planetária jorra em cascata sob os seus olhos, e os iludidos crentes de vários matizes que, contra todas as evidências, ainda acham que as divindades vão curar as chagas cada vez mais profundas, a esmagadora maioria dos seres terrestres, pelo menos no íntimo das suas consciências, não duvidam da situação dramática a que isto chegou.
O objectivo deste escrito não é o de enumerar as guerras, relatar os casos identificados de rapina global, as operações gananciosas e impunes para destruição do planeta. As atrocidades são tantas, e engendradas segundo artifícios tão diversificados, que o risco seria o de banalizar os crimes e deixá-los apenas alinhados como numa fatigante e inexpressiva lista telefónica.
Importante será lembrar, à luz de uma ou outra realidade grave e antes que o seu destino seja o esquecimento, isto é, a impunidade dos criminosos, que o estado do mundo não é um terrível caso de azar, um nefasto golpe de má sorte.
Nada disso. A degradação do mundo do ser humano é obra do próprio ser humano através de poderes delegados naqueles que menos deveriam exercê-los, os principais dirigentes mundiais em exercício. Entre os titulares de cargos que têm realmente capacidade para influir nas coisas do mundo não há um único que se aproveite, competem entre si nas capacidades e atributos para fazer degenerar os assuntos internacionais sem qualquer respeito pelos seres humanos.
Em consciência deveria abrir aqui um parêntesis para registar uma potencial e muito recente excepção, a do papa Francisco. É um homem que põe os dedos nas chagas mundiais e faz os diagnósticos correctos. Porém, fala directamente às consciências, coisas anacrónicas que os dirigentes mundiais, para o serem, erradicaram das suas pessoas. Francisco prega no deserto: quem o escuta não tem poder; os que decidem não o ouvem, por muito que lhe acenam ou sorriam.
Fechado o parêntesis, é altura de evocar um exemplo recente e que reúne muitos dos comportamentos que caracterizam as mentalidades desviantes dos que verdadeiramente nos governam. O caso chegou à comunicação social dominante com algum vigor – porque tem nutridos conteúdos de mentira e escândalo – mas, envolvendo quem envolve, caminha rapidamente para o esquecimento de onde não há que esperar qualquer consequência, muito menos a punição dos responsáveis.
É o que acontece com o Relatório Chilcot, elaborado em Inglaterra e que desnuda, sem margem para dúvidas, o comportamento vergonhoso do ex-primeiro ministro Tony Blair e dos seus comparsas da Cimeira das Lages – George W. Bush, José María Aznar e Durão Barroso. Nesta reunião magna nos Açores foram acertadas as trapaças e ordenados os falsos pretextos para a invasão do Iraque em 2003. Treze anos e milhões de vítimas inocentes depois, entre mortos, feridos, estropiados e desalojados num país ora destruído, o caos instalou-se em todo o Médio Oriente e o terrorismo dito islâmico dele decorrente tornou-se um foco de sobressalto mundial.
George W. Bush, um ícone das atrocidades universais contra os direitos humanos, goza uma reforma dourada nos seus ranchos; José María Aznar usufrui das imensas regalias que em Espanha continuam a gratificar os franquistas de novo ou velho tipo; Durão Barroso foi contemplado com a presidência da Comissão Europeia e, a seguir, com um lugar executivo na seita governante conhecida como Grupo de Bilderberg e uma posição de topo no Goldman Sachs, o superbanco mafioso que, segundo o seu presidente, “faz o trabalho de Deus” na Terra.
E Tony Blair? Pois esse bom católico que reduziu o Partido Trabalhista Britânico a uma parte do partido único neoliberal de inspiração thatcherista, dedica-se a conferências milionárias e a aconselhar governos intrinsecamente democráticos como são a ditadura militar do Egipto e a sádica e terrorista petroditadura da Arábia Saudita.
Mas provavelmente muitas pessoas já se esqueceram de que Tony Blair é o chefe do chamado “Quarteto para a Paz no Médio Oriente”. Não é ficção negra, é verdade factual: continua à cabeça dessa engenhoca que nasceu moribunda mas serve para encobrir, com o aval dos poderes mundiais, a colonização contínua da Palestina por Israel, mesmo depois de revelado o conteúdo do Relatório Chilcot. Um dos dirigentes mundiais que desencadeou uma guerra que deu origem a uma nova e acelerada fase de destruição do Médio Oriente é também o chefe do “Quarteto para a Paz no Médio Oriente”.
E quem constitui esse Quarteto? Os Estados Unidos, como não podia deixar de ser; a ONU, actualmente uma correia de transmissão de Washington e do Pentágono; a União Europeia, desempenhando o papel de corpo presente, reservando toda a agressividade contra os povos mais desprotegidos dos países europeus; e a Rússia de Putin.
O Quarteto pode ser uma caricatura, mas junta as principais forças e organizações mundiais sob a chefia de Tony Blair, um dos responsáveis por um dos maiores crimes dos nossos tempos.
Salta à vista que o estado degenerado do mundo não é fruto de um golpe de azar, de uma nefasta conjuntura de má sorte.
 
 

domingo, 31 de julho de 2016

ISRAEL SOFRE AS DORES DO DAESH


 

O general Herzi Halevy, chefe dos serviços de espionagem militar do Estado de Israel, declarou recentemente, numa conferência em Herzlia, que “não queremos a derrota do Daesh (ou Isis, ou Estado Islâmico) na Síria”. Os seus “actuais insucessos colocam Israel numa posição difícil”, lamentou, de acordo com uma transcrição publicada no jornal Maariv, conotado com a direita política sionista.
A última coisa de que o general Halevy pode ser acusado é de usar uma linguagem hermética, hipócrita, ao contrário de tantos dirigentes políticos mundiais, de Hollande a Obama, de Mogherini a Hillary Clinton, do secretário-geral da NATO aos autocratas da União Europeia. Ele é directo, fala com clareza, respeitando, aliás, a prática do seu primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que se deixa fotografar em hospitais israelitas visitando terroristas da Frente al-Nusra (al-Qaida) feridos durante a agressão à Síria soberana.
“Está fora de questão” que o Daesh “venha a ser derrotado na Síria”, prosseguiu o general Herzi Halevy, embora sem explicar o que tencionam fazer Israel e os seus aliados para evitar que os terroristas, ao que se diz combatidos pela “coligação internacional” onde se juntam os principais parceiros políticos e militares do exército israelita, sejam sacrificados pelas instituições sírias. Também não devemos esperar que um militar com tão secretas funções seja um boquirroto.
As declarações do chefe da espionagem militar israelita apenas devem ser consideradas intrigantes num aspecto: de que modo podem ser conjugadas com a propaganda norte-americana – e a europeia, por arrastamento – à luz da “aliança indestrutível” entre Israel e os Estados Unidos, na verdade dois países geminados nos termos dos famosos postulados de Henry Kissinger? O general Halevy foi factual, mas a sua franqueza confirma ao mundo que o envolvimento dos Estados Unidos e dos seus aliados da NATO na guerra contra o Daesh, pelo menos na Síria, não passa de um conto da carochinha para tentar amainar a revolta da opinião pública perante os atentados terroristas, principalmente na Europa.
Nas últimas semanas, a imprensa norte-americana, designadamente o New York Times, tem vindo a explicar que o pretenso combate apoiado militarmente pelos Estados Unidos contra o Daesh sofre de duas condicionantes de vulto: por um lado, tem de levar em consideração que os terroristas “moderados” sustentados pelo Pentágono e a NATO combatem quase sempre sob o comando operacional ou do Daesh ou da al-Qaida, pelo que, nestas circunstâncias, a “coligação internacional” não pode actuar em pleno, mesmo que queira, o que também ninguém garante; em segundo lugar, a mesma “coligação” abstém-se de agir contra o seus alegados inimigos sempre que estes estejam em posições que lhes permitam contribuir para a derrota do governo sírio, objectivo que parece ser a prioridade comum. De Washington, das principais capitais europeias e dos meios financeiros e mafiosos que manipulam a constelação mercenária do terrorismo dito islâmico.
Chegados a este ponto, as coisas fazem todas sentido e não existe qualquer contradição entre as declarações do superespião israelita e a prática dos principais aliados de Israel. Halevy diz o que todos pensam e executam, embora só ele possa expressar-se sem papas na língua. Israel não tem necessidade alguma de apregoar o seu empenho no combate ao terrorismo, uma vez que a sua intimidade com a conspiração e a prática terrorista é histórica, faz parte da essência do próprio Estado.
Já os Estados Unidos, tal como a França, o Reino Unido e outros aliados estão oficialmente do lado do combate ao terrorismo – originalmente a “guerra contra o terrorismo” de George W. Bush – e, por isso, sentem necessidade de, a cada passo, disfarçarem as suas evidentes cumplicidades com o Daesh e afins, tentando não ser vergonhosamente manchados com o sangue dos seus concidadãos vítimas do terrorismo. O êxito é limitado, mas o terrorismo mediático vai conseguindo esconder a verdade de grandes sectores da opinião pública.
No entanto, o que verdadeiramente conta para todos, em primeiro lugar e neste momento, é derrubar o governo legítimo e soberano da Síria, fazendo esse grande favor a Israel mesmo que isso signifique entregar o todo ou parte do território sírio ao Daesh, al-Qaida e parentes. Uma tal estratégia faz gato-sapato da ONU, do direito internacional e dos direitos humanos, mas quem os leva ainda a sério?
O general Halevy falou por todos: “A derrota do Isis na Síria está fora de causa”. Ou seja, destruir a Síria soberana é o objectivo último dos terroristas e dos que dizem combatê-los
Está dito e ficamos informados. Melhor do que nunca.

sábado, 16 de julho de 2016

“O PRESENTE DE DEUS” A ERDOGAN


 

O presidente da Turquia, Recep Payyp Erdogan, afirma que a tentativa de golpe militar de sexta-feira foi um “presente de Deus”: vai permitir-lhe “limpar” as forças armadas.
Quem fala verdade não merece castigo, pelo que todos os deuses evitarão punir o autocrata turco, embora sabendo que muitos são os seus pecados.
E “limpezas” são a especialidade deste padrinho e protector de uma miríade de grupos de mercenários e terroristas entre os quais se destacam, para os que não estão lembrados ou o ignoram, o Daesh ou Estado e Islâmico e a Al-Qaida nos seus muitos e variados heterónimos.
Limpou o país da oposição, acusando os principais adversários de servirem os direitos nacionais curdos e ameaçando privá-los da nacionalidade turca. Para que não surgissem obstáculos à sua ascensão ao topo presidencial do poder fez manipular actos eleitorais através da propaganda, da censura e do medo, de tal modo que nem os observadores do Conselho a Europa e da OSCE, embora reconhecendo as irregularidades em privado, ousaram torná-las públicas e definitivas.
Limpou o aparelho judiciário e militar saneando centenas de juízes e os procuradores que denunciaram a corrupção governamental e da família Erdogan, designadamente a sua familiaridade pessoal e financeira com o banqueiro saudita Yassim al-Qadi, próximo de Bin Laden e conhecido internacionalmente como “o tesoureiro da Al-Qaida”. Por essa razão, está sob a mira da ONU, o que não o impede de deslocar-se a Ancara em avião privado para conviver e gratificar generosamente a família presidencial.
Vem limpando paulatinamente as forças armadas, mas este “presente de Deus”, como admitiu o próprio Erdogan, proporciona-lhe uma oportunidade de ouro para acelerar o processo. A partir de agora ruirá o maior obstáculo secular à confessionalização de um regime turco formatado em estrutura ditatorial e em teor fundamentalista islâmico.
Erdogan fala claro, disso não tenhamos dúvidas. Há 20 anos, em plena ascensão na carreira política, iniciada entre os fascistas e supremacistas “lobos cinzentos”, definiu a democracia como “um eléctrico que abandonamos quando chegamos à nossa paragem”. Recentemente falhou a consulta para impor uma Constituição “inspirada em Hitler” – as palavras são suas – de modo a consolidar um poder presidencial absoluto.
A seguir a esse intuito por ora fracassado, Erdogan começou então a receber “presentes de Deus”.
O atentado contra o aeroporto de Istambul parece ter sido um deles. Apear da autoria não ter sido reivindicada, Erdogan atribuiu-o ao Daesh, por conveniência da sua própria imagem internacional; mas por que razão os protegidos iriam atacar no coração do protector? Provavelmente por convergência de interesses – uma mão lava a outra, não é o que se diz? Um atentado é, sem dúvida, oportunidade de ouro para reforçar poderes de excepção e perseguir inimigos internos vários, mesmo que nada tenham a ver com a violência.
Quando ainda decorre o rescaldo do acto terrorista surge o golpe militar, com inegáveis debilidades de amadorismo num exército dos mais poderosos da NATO, precisamente com Erdogan ausente, “de férias”, circunstância excelente para um regresso triunfal, afirmativo, justificando limpezas. Deus não poderia ter sido mais generoso, em boa verdade.
Enfim, é a este ditador turco que a União Europeia paga anualmente três mil milhões de euros confiscados aos nossos impostos para impedir que cheguem à Europa os refugiados das guerras que os donos da Europa provocam. Para que conste, não há um vínculo formal entre o conselho Europeu e Erdogan sobre esta verba; foi estipulada apenas em comunicado de imprensa dos chefes de Estado e de governo da União Europeia.
Foi com este presidente turco que o governo francês negociou a garantia de não haver atentados do Daesh durante o Euro 2016, em troca do apoio à criação de um Estado curdo no Norte da Síria. Constatámos, da maneira mais trágica, que ao Daesh bastaram apenas quatro dias para se libertar do período de nojo, fazendo gato-sapato do securitarismo fanático e inconsequente de Hollande e Valls.
É a este presidente turco que a União Europeia ainda reconhece credenciais de democrata, apesar de o próprio rei Abdallah da Jordânia ter revelado o seu apoio ao Daesh, à Al-Qaida, ao contrabando de petróleo que serve de financiamento ao Estado Islâmico e de enriquecimento à mafia familiar de Erdogan.
Foi comovente – e patético – o apoio de grande parte da comunidade mediática a Erdogan durante as vicissitudes da tentativa de golpe e ao uso dos seus apoiantes como escudos humanos e carne para canhão nas ruas, praças e pontes das principais cidades da Turquia.
Entre a componente militar e a mafia governamental de Erdogan estavam em luta, durante a tentativa de golpe, dois conceitos de regime autoritário: um secular, outro fundamentalista islâmico. A democracia e os interesses populares não tinham nada a ver com aquela guerra entre elites interesseiras e pouco ou nada preocupadas com as pessoas.
O terrorismo islâmico, a guerra e a anarquia no Médio Oriente, porém, têm muito a ganhar com a absolutização do poder de Erdogan em Ancara. Ou seja, é impossível estar simultaneamente contra o terrorismo islâmico e temer pelo futuro político de Erdogan. A democracia não passa por aí, mas também já pouco se sabe dela nesta União Europeia.
Porém, quando a vida das pessoas está à mercê destes “presentes de Deus” é possível testemunharmos os acontecimentos e os ditos mais bizarros.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

AS METÁFORAS DO FUTEBOL




A vitória da selecção nacional portuguesa de futebol e as suas repercussões entre os portugueses, motivando o maior episódio de euforia colectiva de há muitos anos a esta parte, é um fenómeno que surge contra a corrente do jogo e que, se reflectirmos bem sobre ele, traz lições suscepíveis de virar o próprio jogo, assim se criem condições para aplicá-las à letra.
… Ora é apenas um campeonato de futebol e as reacções são empoladas por efeitos de uma propaganda que gera intoxicação anestésica…, dirão muitos. Com a sua quota-parte de razão, não o neguemos, tendo em conta o vastíssimo historial de manipulação em torno do fenómeno futebolístico.
No entanto, o contexto em que os factos acontecem pode ser uma grande oportunidade para transformar esta mobilização num instrumento motivador em torno da essência nacional e na sua afirmação soberana em organismos e circunstâncias que são visivelmente hostis a Portugal e chegam a ser cruéis para os portugueses.
É evidente que um campeonato europeu de futebol não vale nada perante a mentalidade xenófoba de um Schauble, o espírito segregacionista de um Juncker – para quem “a França é a França”, isenta de sanções porque não se lhe aplicam as regras do défice “de uma forma cega” – as práticas torcionárias dos interesses financeiros que patrocinam o funcionamento da União Europeia. Tão pouco lhes interessa que um povo se tenha reencontrado com interesses e emoções entretanto arrastados pela torrente contínua de humilhações, exigências, sacrifícios que chegam dessa tal Europa capaz de tratar as pessoas com o desprezo absoluto que se reserva para as insignificâncias.
A lição desta enorme vitória desportiva tem de ser aprendida e aplicada numa outra perspectiva.
Sabemos muito bem como as elites, principalmente os clãs políticos até há pouco dominantes em Portugal, se colam aos êxitos desportivos, de tal maneira que muitas vezes é difícil traçar a fronteira entre o reconhecimento genuíno e o oportunismo cínico. Trata-se de gente que tem sido capaz de saudar as conquistas desportivas como feitos de um povo, ao mesmo tempo que hipoteca a vida desse povo subordinando-o a exigências, interesses e ordens externas prejudiciais à grande maioria dos cidadãos.
Um comportamento com estas características, levando a crer que mais nada há a fazer que não seja cumprir as ordens exteriores, porque esse é o caminho para um futuro desanuviado, afinal cada vez mais longínquo, afastou os portugueses dos valores nacionais, diluiu a imagem do país, desiludiu-os com a política, transformou-os em seres amorfos cada vez mais incapazes de reagir às malfeitorias dessa Europa que nunca esteve nem está “connosco”. Portugal abdicou da soberania, não decide por si, está à mercê dos tubarões europeus enquanto os dirigentes do costume asseguram que é assim que tem que ser, não há volta a dar-lhe.
Uma vitória no Campeonato da Europa, com o seu quê épico-desportivo, alcançada num país que tem sido dos mais hostis e inclementes na punição e humilhação de Portugal e dos portugueses – não esquecemos que é parte do “eixo” que usa a União Europeia em proveito próprio – devolve uma sensação emotiva e patriótica que se julgava extinta. Os portugueses redescobriram o seu país, reencontraram um orgulho que andava de rastos, constatam agora que é possível alcançar feitos com elevado grau de dificuldade e contra os mais poderosos.
Nada disto devolve a soberania perdida. Mas acorda, mobiliza; uniu os portugueses das comunidades emigrantes com os do território nacional – afrontaram juntos os representantes, simbólicos é certo, de entidades responsáveis pela humilhação e ultrapassaram-nos.
É o momento de os dirigentes portugueses em exercício levarem a sério o potencial de mobilização resultante destes feitos desportivos – o atletismo português também brilhou, igualmente em campeonatos da Europa - e da enorme vaga de orgulho nacional que provocaram. O país afinal não desapareceu; tem voz, uma voz que pode e deve ser usada contra todos os que pretendem subjugar a vontade e os interesses dos portugueses, seja sob que pretextos for, incluindo a aplicação de regras sobre as quais não foram sequer chamados a pronunciar-se. Havia Portugal muito antes da União Europeia e haverá Portugal certamente para além do triste fim que a União Europeia levará. E traidores sempre houve, como em 1383, 1640 ou no ultimato de 1890: mas conhece-se o destino que tiveram.
Os dirigentes portugueses não podem ignorar que na sua rectaguarda continua a existir um potencial de orgulho e mobilização com que podem contar para enfrentar estratégias injustas e ilegítimas que fazem sofrer o povo. Não precisam de dizer que sim cordatamente aos manipuladores de números e às sanguessugas da especulação. Dizer não ao inaceitável, como a selecção de futebol espantou a adversidade e restaurou o orgulho nacional, é uma opção sempre válida. Basta que seja claramente explicada aos portugueses, para que eles compreendam as razões, conheçam as consequências e participem nas decisões. Em síntese: é preciso que os portugueses sejam envolvidos nas escolhas dos caminhos a seguir e sintam que a soberania é recuperável; e seria importante que essa atitude fosse assumida agora que os portugueses estão despertos, com o orgulho restaurado, acreditando que há êxitos difíceis mas não impossíveis, nem dependentes de quaisquer milagres.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

O QUE ESCONDE A CHACINA DE ISTAMBUL


 

Na sua visão esquemática e simplista de acontecimentos graves, designadamente os relacionados com o terrorismo, a comunicação social dominante aceita como boa e natural a tese das autoridades turcas segundo as quais o recente atentado no aeroporto de Istambul foi obra o Estado Islâmico, ou Isis, ou Daesh.
E assim se enganam as pessoas, induzindo-as em raciocínios também eles esquemáticos e simplistas que escapam à realidade e confundem deliberadamente os factos.
Em relação ao atentado de Istambul existe uma diferença relevante quando comparado com os de Paris ou Bruxelas: a autoria não foi reivindicada. O facto pode não ser determinante, mas, apesar de tudo, por alguma razão o Daesh não reclamou para si a execução do massacre. Poderá ser um pormenor, mas o mais certo é que não o seja.
O que não é um pormenor, antes uma realidade comprovada pelos factos e pela informação dos satélites, é que o Daesh funciona como uma extensão do regime ditatorial e expansionista do presidente turco Recep Tayyp Erdogan. Logo, não faz qualquer sentido que o grupo tenha atacado num local tão sensível da Turquia, a não ser que isso reverta em favor do regime de Erdogan.
Por isso, mais do que a reivindicação ou até os laços conhecidos, a maneira mais apropriada de perceber a razão de ser do massacre será seguir muito de perto, e com o máximo de informação possível, os próximos passos de Erdogan e dos seus agentes.
A primeira medida conhecida revelou logo muito sobre a pouca transparência dos círculos governamentais turcos perante o crime. O AKP, o partido fundamentalista islâmico que sustenta a ditadura, rejeitou a proposta da oposição para criação de uma comissão parlamentar de inquérito ao atentado. Isso faz com que a versão do presidente, a de que foi o Daesh, seja a única admitida, funcionando como verdade oficial adoptada internacionalmente.
Sabe-se que a França de Hollande e Valls e o fundamentalismo turco estabeleceram um acordo em que Ancara promete desenvolver todos os esforços para evitar que o Daesh execute qualquer atentado em território francês durante o Campeonato Europeu de futebol. Em contrapartida, a França compromete-se a apoiar os esforços da Turquia e de Israel, com a cumplicidade dos Estados Unidos, para que seja criado um “estado curdo” no Norte da Síria, através de uma limpeza étnica contra comunidades árabes e cristãs. A manobra conta com a traição da facção Salih Muslim do grupo curdo YPG, que se aliou ao regime turco permitindo a possível transformação desse “estado curdo” no lugar para onde serão expulsos os curdos da Turquia, que Erdogan ameaça destituir da nacionalidade turca. Não seria o primeiro ataque em massa das correntes supremacistas e fascistas da Turquia contra minorias existentes nos territórios sob seu controlo. Ainda muito recentemente o Papa Francisco lembrou o genocídio de centenas de milhares de arménios, cometido há 100 anos.
Sendo o terrorismo internacional um submundo no qual os rótulos têm reconhecida volatilidade – os mercenários mudam de grupo e de obediência consoante quem lhes paga e outras vantagens e recompensas – é muito provável que nunca venha a conhecer-se a verdade sobre o atentado no aeroporto de Istambul, prevalecendo a versão sem sentido, mas chancelada como verdade oficial, posta a circular pela ditadura de Erdogan.
Para quem não gosta de ser enganado e de comer gato por lebre, a sugestão que fica é a de seguir os próximos passos do regime de Erdogan e não lhe será difícil aperceber-se de quem irá tirar proveito de mais esta chacina de inocentes.

terça-feira, 21 de junho de 2016

FALEMOS ENTÃO DO BREXIT



Está em curso uma intoxicação epidémica, que tem contornos de uma operação de terror, sobre as terríveis consequências que se abateriam sobre o mundo, a Europa e até este pobre cantinho lusitano se o Reino Unido, por sinal o braço europeu mais fraterno do grande império, sair da União Europeia.
A vaga de propaganda chantagista sobre os horrores que adviriam dessa hipótese atingiu a histeria do vale-tudo e mesmo agonias de desespero que justificariam uma investigação séria sobre as circunstâncias que levaram ao cobarde assassínio da deputada trabalhista Jo Cox. Para todos os efeitos, o autor foi um demente dedicado aos folclores nazis, agiu sozinho e pronto. O assunto foi retirado das primeiras páginas, ficando agora cada qual com a resposta à pergunta clássica que se faz para adivinhar o criminoso nos romances policiais: a quem aproveita o crime?
Sair da União Europeia é um direito inalienável dos britânicos, que quase certamente não se livrarão de uma segunda consulta, ou das que forem necessárias, se teimarem em dizer que não desejam estar num sítio onde, em boa verdade, nunca estiveram de boa vontade. Não é este o hábito dos mandantes da União Europeia, vide as repetições de referendos na Irlanda, em França e na Holanda até se obterem os resultados pretendidos pela ditadura financeira internacional?
A saída do Reino Unido da União Europeia, ou a sua continuação, será o resultado de um exercício básico de democracia, essa coisa que está de tal maneira corrompida no espaço europeu que os senhores de Bruxelas até se esquecem de a invocar. Ao invés, em vez de promoverem o esclarecimento sereno dos britânicos, patrocinam uma campanha de medo e mentiras onde avultam figuras desacreditadas como o presidente dos Estados Unidos, o conspirador e golpista internacional George Soros através do seu Grupo Internacional de Crise (destruição da Jugoslávia, criação do Kosovo, golpe fascista na Ucrânia e outras coisas equivalentes) e o inimitável Tony Blair – será impossível resumir as suas malfeitorias, mas bastará recordar a sangria do Iraque baseada numa comprovada aldrabice. Enfim, são todos muito boas recomendações para um Reino Unido dentro da União.
O ambiente de pressão é de tal ordem que um cidadão comum quase terá que pedir desculpa para dizer que não virá mal nenhum ao mundo se o Reino Unido sair da União Europeia, entidade em implosão. O grau de desmantelamento é tal que Bruxelas e a colaboracionista David Cameron em Londres fabricaram uma União Europeia à la carte para os britânicos, a qual, bem à medida do primeiro-ministro inglês, é racista e xenófoba. Não foi ele que qualificou os refugiados e imigrantes como “uma praga”, levando Bruxelas atrás de si, o que nesta matéria nada tem de difícil? A partir de agora qualquer país da União pode reclamar um estatuto especial para si, ameaçando com a saída. Será uma simples questão de coragem política.
Alega-se: do lado do Brexit estão os fascistas britânicos. Pois estão. E quem está ao lado dos fascistas ucranianos, polacos, húngaros, eslovacos, estonianos, lituanos, croatas, kosovares, turcos com quem a NATO e a União Europeia anda nas palminhas? Os fascistas estão em todo o lado na Europa, porque os dirigentes da Europa lhes estendem as mãos, uns por oportunismo, outros por convicção. Quando se der o alerta geral provavelmente será tarde.
Com ou sem Brexit, a União Europeia está a cavar um pouco mais da sua sepultura. Enquanto isso, fortalecem-se os sinais, em todo o mundo, de que o neoliberalismo, como estado supremo do capitalismo, necessita cada vez mais de sistemas políticos autoritários para maximizar os proveitos da sua anarquia financeira. Isto é, o mercado verdadeiramente livre sente ainda como estorvo o pouco que resta de democracia. Por isso o fascismo ressurge em cada canto, por ser o infalível garante da equação exploração máxima igual a lucro máximo. Por isso, ao contrário do que malevolamente proclama a comunicação transformada em propaganda, mesmo que seja “de referência”, os manifestantes em França contra a lei laboral esclavagista não são “herdeiros de Pétain”. Lutam sim contra os políticos cúmplices dos imensos poderes internacionais que arrasam, sem dó, os direitos sociais e humanos. Os grandes impérios económicos e financeiros alemães lucraram a bom lucrar com o nazismo de Hitler. Por isso, é uma mentira deslavada e uma grosseira chantagem intelectual dizer que o fascismo e a liberdade sem limites do mercado são inconciliáveis.
Pelo contrário, são feitos um para o outro. E desta feita já têm em funções a União Europeia e a NATO como regaços dessa aliança criminosa, dispensando grandes invasões militares, pelo menos na Europa até às fronteiras russas.
Com ou sem Brexit, é claro.