pub

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

ANO FATAL PARA A UNIÃO EUROPEIA


 
O ano de 2015 foi nefasto para a União Europeia, certamente o mais letal para aquilo que alguns designam ainda, com piedosa boa vontade, como “projecto europeu”.
A responsabilidade pelo desastre deve ser assacada por inteiro, mesmo em assuntos que parecem de origem externa ao espaço europeu – como é o caso da tragédia dos refugiados – aos dirigentes de Bruxelas e aos dos Estados nacionais. Já não havia quaisquer ilusões sobre o destino desastroso de tal “projecto”, porque o que torto nasce tarde ou nunca se endireita e, além disso, ao longo de gerações, os sucessivos dirigentes europeus entretiveram-se a entortar anda mais as intenções, já de si falaciosas, dos “pais fundadores”, apurando sem pudor as mentiras originais.
No ano de 2015 convergiram, como nunca, os factores que vinham correndo mal e os que explodiram entretanto nas mãos aventureiras, oportunistas e irresponsáveis dos dirigentes europeus – aliás tanto mais irresponsáveis quanto mais elevada a responsabilidade que desempenham. Uma catástrofe.
Comecemos pela crise económica, que só na demagogia primária e na descarada manipulação das estatísticas parece no caminho da solução. Nada disso: a economia não sai da estagnação e o modelo político inventado para dar cobertura a um regime que coloca a produção económica como subsidiária da especulação financeira está a rebentar pelas costuras. Como sabem, esse modelo político é a asfixia democrática sob o poder absoluto de dois braços partidários defensores das mesmas práticas económicas neoliberais – conservadores e sociais-democratas. Mas o que parecia consolidar-se passo a passo, desde o início da década de noventa, começou a explodir em 2015. Três eleições gerais consecutivas – Grécia, Portugal e Espanha – puseram em causa o regime dito bipolar, ou de arco da governação, ou de bloco central (bloco de direita é a designação adequada), alterando profundamente os contornos da “moderna” União Europeia: um sistema de dominação económica sobre mais de uma vintena de protectorados do único país a quem verdadeiramente serve a moeda única.
Ora o renascimento da política observado em Portugal, Espanha e Grécia, conjugado com outras alterações de cenário em desenvolvimento, por exemplo em França e no Reino Unido, introduziram um quase esquecido debate político numa dominação económica presa na ratoeira dos casinos financeiros. Isto é, no ano de 2015 confirmou-se com absoluta certeza que os mecanismos de ditadura económico-financeira sobre a política, isto é, a sobreposição de restrições orçamentais e monetárias sobre a soberania dos Estados membros – o federalismo encapotado – começam a chocar com a vontade dos povos expressa democraticamente, o que é o princípio do fim do regime em vigor.
O limite de 3% do défice, imposto pela dominação alemã através da moeda única, trava o investimento público e paralisa a economia, sem resolver os problemas das dívidas; e o controlo orçamental de Bruxelas impede os países de fazerem opções económicas de acordo com os seus interesses e os dos seus povos. Estas duas realidades estão claras aos olhos dos cidadãos, que começaram a agir em conformidade. O modelo autoritário e austeritário está a ruir. E os cidadãos percebem também, cada vez mais, que o investimento público é fundamental porque a maioria do capital privado não beneficia a economia uma vez que é desviado para a especulação e os paraísos fiscais.
Acresce que os bons ventos financeiros deixaram de soprar porque, por muito que a massa monetária em circulação corresponda maioritariamente a riqueza virtual, a paralisação da economia infecta o sistema bancário, como está à vista, e expande a crise ao sistema de especulocracia. A União Europeia está enredada na teia de funcionamento ganancioso e errático que ela própria criou, como se a tese do “fim da história” regenerada pela corrida à guerra e às riquezas naturais ganhasse novo alento.
Em termos de União Europeia essa estratégia foi o maior erro da sua história, porque pode ser a causa determinante do seu fracasso absoluto.
A crise dos refugiados e os seus efeitos no continente, somados à crise económica e social, transformaram a União Europeia numa bomba de relógio que entrou em contagem decrescente em 2015. A União Europeia, que nunca teve uma política de imigração muito menos terá uma política coerente e humanitária para com os refugiados. E, no entanto, criou a crise: participou aberta e criminosamente nas guerras que do Médio Oriente à África do Norte e subsaariana provocaram as vagas de refugiados e também o pânico com o terrorismo.
A resposta europeia tem-se baseado nas tendências securitárias e de criação de barricadas em forma de muros, cercas, encerramentos de fronteiras, pagamentos a terceiros para servirem de tampão (caso da Turquia); acoitando-se, além disso, sob a protecção expansionista da NATO, estrutura que, sob comando norte-americano, é tão responsável como os dirigentes europeus pelo caos em que a União Europeia está a mergulhar.
Num cenário de crise económica e social, agravado pela tragédia dos refugiados, as tendências xenófobas, revanchistas e nazis avivam-se de lés-a-lés na Europa, sem que os dirigentes da União pareçam incomodados com esse imenso potencial terrorista. Pelo contrário, a participação dos dirigentes europeus no golpe ucraniano e na consolidação da sua componente nazi é mais um sinal da irresponsabilidade dominante. À boleia da nazificação ucraniana, a NATO e Barack Obama encaram a possibilidade de instalar armas nucleares na fronteira russa, provocação cuja gravidade não necessita de ser explicada. Com a agravante de essa mesma Ucrânia ser o centro onde se intensifica a cooperação de terrorismos que só na designação são distintos: o nazi e o islâmico.
Do “projecto europeu” pouco resta. Para os cidadãos, noutras condições, tal seria uma excelente notícia. O problema é que a derrocada da grande mentira histórica que esse “projecto” foi e é vem arrastando todo o continente para a hipótese aterradora da reaparição de provações como as que desde há cem anos estão escritas com o sangue de dezenas de milhões de seres humanos da Europa, e também do resto do mundo.


 
 

sábado, 26 de dezembro de 2015

SANÇÕES A QUEM COMBATE O TERRORISMO



Os Estados Unidos da América e os dirigentes da União Europeia, conhecidos estes pelo seu comportamento pavloviano salivando às sinetas Washington, decidiram reforçar as sanções económicas contra a Rússia. Só porque sim, por causa das coisas na Ucrânia, da reintegração da Crimeia na Rússia, da resistência das populações russófonas às limpezas étnicas em curso no Leste do país, enfim mais sanções por nada de novo.
Por isso, quando, por exemplo, os agricultores da União Europeia, portugueses incluídos, decidirem protestar contra a crise agravada pelas restrições impostas à importação dos seus produtos pela Rússia, deverão antes virar-se contra as decisões canhestras e anti económicas adoptadas pelos seus próprios governos.
Retomando o fio à meada das novas sanções à Rússia, observemos o contexto temporal e factual em que foram agravadas. Por exemplo, a multinacional norte-americana de sondagens Gallup dedicou-se a auscultar as opiniões dos ucranianos sobre o governo criado em Kiev, e as conclusões não poderiam ser mais incómodas para os adeptos da “revolução da Praça Maidan”, entre os quais se encontram mui progressistas eurodeputados e eurodeputadas. Nove em cada dez dos ucranianos ouvidos consideram que os níveis governamentais de corrupção são hoje muito mais elevados; e a popularidade do “rei do chocolate” Poroshenko, que usurpou a chefia do Estado, fica-se pelos 17%. Yakunovich, o presidente deposto pelo golpe, teve um mínimo de popularidade de 23%, e foi no auge da campanha de propaganda visando denegri-lo e afastá-lo.
Reconhece a Gallup que poucos são os ucranianos que ainda chamam “revolução” ao que se passou – assim o ordena a propaganda oficial - preferindo qualificá-lo como o que realmente foi: um golpe. A empresa de sondagens não incluiu perguntas sobre a crescente influência nazi no governo do país – a tanto não se atreveu – mas quanto a isso basta a realidade conhecida, é desnecessário produzir inquéritos. A realidade integra também uma temível bomba de relógio para a humanidade, que são as diligências de Obama e da NATO para instalar armas nucleares na Ucrânia, isto é, na fronteira com a Rússia. Quando qualquer coisa de semelhante aconteceu – o dirigente soviético Krustchev procurou instalar mísseis nucleares nas imediações dos Estados Unidos, em Cuba, em 1962 – o mundo esteve a beira de uma guerra entre as duas grandes potências.
Alarguemos um pouco mais o contexto das novas sanções norte-americanas e europeias à Rússia. Foram decididas durante uma das mais eficazes semanas da guerra da Rússia e do exército sírio contra o chamado Estado Islâmico, ou Isis, ou Daesh. Nos últimos sete dias a aviação russa na Síria fez 302 saídas, destruiu 1093 alvos terroristas em províncias estratégicas como Alepo e Hama, um extenso campo de treino de mercenários oriundos principalmente da Turquia e de Estados da antiga União Soviética, duas refinarias de petróleo, três áreas de extracção e dezenas de estações de abastecimento de combustíveis, além de veículos transportando terroristas e armas pesadas. As acções da aviação russa permitiram ao exército sírio reconquistar território e um aeroporto militar. As notícias do mesmo período são omissas quanto a danos provocados aos terroristas pela famosa “coligação militar” norte-americana, europeia e saudita. Porventura a eficácia terá sido zero: há períodos assim…
Em boa verdade, o tempo não chega para tudo: ou se fazem operações anti terroristas ou se organizam laboriosos conclaves sobre sanções a aplicar aos que fazem o favor ao mundo de combater o terrorismo. A famosa “coligação das democracias” deu prioridade às sanções. Ela lá sabe: o combate ao terrorismo pode esperar.
 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A SUA PRIVACIDADE É ZERO


 
O título deste apontamento não é novidade, eu sei. Uns acreditam que a sua vida privada ainda tem o valor e o conteúdo que as Constituições, tratados, leis nacionais e internacionais lhes garantem; enfim talvez prefiram viver na inocência, na ignorância e achem que os votos piedosos desejados em alturas como esta, bem-intencionados é certo, também são extensivos aos senhores e senhoras da delacção, da intrusão, da bisbilhotice militar, económica e política. Outros, mais realistas, quiçá melhor informados, já perderam as ilusões e sabem, provavelmente até sem grande soma de pormenores técnicos, que a vida de cada um é pasto de devassa total daqueles que em nome da nossa “segurança” colocam sob um vendaval de ameaças o direito, agora meramente teórico, de sermos nós próprios e termos livre arbítrio. Como gosta de dizer o socialista e ministro francês do Interior, Bernard Cazeneuve, a vida privada não é um direito humano.

A explicação desta longa introdução tem a sua razão de ser precisamente na terra do senhor Cazeneuve, Paris, por coincidência ou talvez não, para o caso tanto faz. O cenário é a Milipol parisiense, grande feira mundial dos equipamentos militares e de espionagem de últimas gerações, magno certame estratégico, como devem compreender, porque guerras há muitas, muitas outras hão-de vir e quanto ao terrorismo nem é bom falar: multiplicam-se os que dizem combatê-lo, inventam-se prodígios da técnica para detectar as suas manhas e ele cresce sem parar. Os americanos têm a fama de serem teimosos em manter o mercado livre das armas - e que mercado seria efectivamente livre amputado desse sector? – mas os franceses acolhem a maior feira mundial do ramo, pelo que nunca se devem atirar pedras aos telhados do amigo quando os próprios são de vidro.
Ao que consta entre quem está familiarizado com as novidades da espionagem, a grande vedeta do enorme certame parisiense nem sequer tinha stand próprio. A modesta empresa israelita Magen subiu aos topos do ranking da curiosidade com o seu Mabit, um aparelho pouco maior que um rooter e que, colocado num café, num restaurante, num hotel ou algo semelhante, recolhe nas imediações tudo o que seja passawords de e-mails (gmail e hotmail incluídos), conteúdos de páginas web e actividades de facebook e twitter, mesmo quando sob protocolos de segurança. O Mabit está apto a aspirar tudo o que há em smartphones, tablets e demais gadgets funcionando numa extensa vizinhança. Pois claro, hoje em dia qualquer um que ande na rua, visite cafés e restaurantes é um potencial terrorista, cabendo-lhe provar que talvez não o seja. Entretanto, a Magen e outras magens e os que a elas recorrem já lavraram as suas sentenças e as transmitiram a quem de direito. Sabe-se que o êxito foi tal que a Magen já assegura apenas a exportação de Mabits para os próximos meses.

Os génios criadores, e sem mãos a medir, são Nir Barak, antigo engenheiro da unidade de intercepção dos serviços militares de espionagem de Israel; Yacob Amidror, ex-director do Mossad, a espionagem externa de Israel; e Shabtai Shavit, ex-director do Conselho Nacional de Segurança de Israel. Pequena empresa mas tendo por detrás um Estado poderoso, conhecido pela sua eficácia terrorista e a sua aliança “indestrutível” com a maior potência militar mundial.
Edward Snowden escancarou a caixa de Pandora que o governo mais poderoso do mundo e os seus aliados manipulam para fazer dos cidadãos simples carneiros vigiados ao pormenor, enquanto julgam que são livres e têm capacidade de decidir em assuntos que lhes dizem única e exclusivamente respeito. Apesar da envergadura da estrutura orwelliana que denunciou, ela representa parte de um todo cuja extensão é inimaginável, feito de múltiplas áreas de intervenção através das quais nenhum dos nossas actos passa em claro.
Não querendo ser exaustivo, pensem só no que aí está plantado e nós já sabemos: serviços estatais de espionagem de cidadãos e instituições, serviços de espionagem militares, monitorização por satélites em tempo real e visionamento ao centímetro, milhões de câmeras ditas de segurança em ruas e estabelecimentos, redes de hackers ao serviço de Estados para espiar e viciar a internet, escutas não autorizadas de telefones; e agora mabits e outras aparelhagens do género sugando os conteúdos de meios de comunicação privados ou públicos usando wifi. E não se iludam: para estes soldados do exército universal da devassa nem o céu é o limite.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

DO FRANQUISMO PUTREFACTO À ESPANHA PLURINACIONAL


 
As eleições gerais de domingo em Espanha foram um acontecimento histórico. Observamos politólogos, comentadores, analistas, especialistas e outros entendedores com a cabeça à roda perante tamanha “confusão” provocada pelos eleitores; vemos a bisonha saga dos jornalistas habituados ao sossego da ditadura do “bloco central” agora tontos e à deriva sem saberem como vai sobreviver Espanha a um cenário político à “antiga italiana”. E que dizer dos mandantes de Bruxelas, coitados, ainda agoniados com a reviravolta grega, depois engasgados com o “estranho” governo português, já a contas com um problema que jamais pensariam vir a preocupá-los, como o de haver uma expressão democrática reclamando plurinacionalidade? Será quem seu redor tudo está a ruir?
Pois bem, os cidadãos das nações e comunidades de Espanha disseram não ao “bloco central” e afirmaram agora no local próprio, as urnas, o que há muito se intuía: que os arranjos resultantes da transição política do franquismo para a monarquia parlamentar já não funcionam. Falta ainda a afirmação plena republicana como formato a assumir pelo Estado, mas essa discussão será inerente, também, ao profundo debate que os resultados desta consulta eleitoral vai suscitar.
É verdade que o quadro parlamentar resultante das eleições não permite, à partida, encontrar um governo maioritário, nem minoritário. Os eleitores insistiram ainda em manter os neofranquistas de Rajoy como os mais votados, apesar do desemprego, da subserviência aos mercados e da surdez às exigências populares, mas reduziram-nos a 28,7% e retiraram-lhes 63 deputados, deixando-os a 53 da maioria para governar. Os seus parceiros naturais, a direita envergonhada que dá pelo nome de “Cidadãos”, não foram além de 40 eleitos e, depois disso, olhe-se para onde se olhar, para cada recanto do novo Parlamento, e não há maneira de descobrir os 13 votos necessários para a maioria. Poderiam ser, hipoteticamente, os 8 da Democracia e Liberdade da Catalunha (antiga Convergência y Unió) e os 8 do Partido Nacionalista Basco, mas a forma como Rajoy e as suas clientelas ultrajaram as Autonomias veda liminarmente essa solução. Quanto a eventuais acordos com os socialistas do PSOE (90 deputados, mas menos 20 que em 2011), ou os emergentes Podemos (69 deputados), ouvindo os respectivos dirigentes nem deve perder-se tempo a conjecturá-los, pois ambos dizem rotundamente não a uma viabilização de um governo do PP de Rajoy.
Segundo a Constituição, o rei Filipe vai agora ouvir os partidos e indigitar um nome para chefe do governo, o qual deve formar uma maioria ou então garantir uma minoria que funcione através de abstenções e acordos pontuais. Se o primeiro nomeado não conseguir qualquer das soluções segue-se um segundo, e assim sucessivamente durante um máximo de dois meses. Se nada for solucionado até lá, marcam-se novas eleições.
Rajoy poderia teoricamente conseguir até a colaboração de “Cidadãos” para um governo em minoria, mas a maioria contrária existente no Parlamento inviabilizaria essa hipótese.
Há, de facto, uma maioria possível, embora politicamente muito delicada e trabalhosa. Ela implicaria a programação de alterações de fundo no formato do Estado, de forma a reflectir o carácter plurinacional do país. Resultaria da junção dos votos das esquerdas (PSOE, 90; Podemos, 69; Esquerda Republicana da Catalunha, 9; Euzkadi Eskerra – Bildu, 2; e Esquerda Unida, 2, num total de 172), com os dos partidos autonomistas (Partido Nacionalista Basco, 6; e Coligação Canária, 1, num total de 7). Estes 179 votos seriam suficientes para garantir um governo maioritário, que exige 176.
Para se admitir esta hipótese há que ter em conta a certeza de que nada poderá ficar na mesma no que diz respeito às relações institucionais entre Madrid e as Autonomias. Isto é: torna-se necessário reconhecer o direito dos povos de Espanha a decidirem livremente o seu futuro. Os excelentes 21% obtidos pelo Podemos não se devem certamente à pobreza da sua base programática ambígua, indefinida e ideologicamente caótica. O seu êxito esteve na clareza elementar com que colocou perante os eleitores a questão plurinacional do Estado Espanhol e a necessidade de este corresponder à vontade dos povos de Espanha a expressar numa nova Constituição, capaz de enterrar o carácter centralista da “transição”. Repare-se que o Podemos foi o partido mais votado na Catalunha e no País Basco e foi o segundo nas comunidades de Madrid, Valência, Galiza, Baleares, Canárias e Navarra. O verdadeiro segredo do Podemos foi o de defender que devem ser admitidos referendos vinculativos nas comunidades sobre o seu futuro relacionamento com Madrid.
O PSOE, porém, recusa-se a admitir este passo entre o passado e o futuro, hipotecando, portanto, a única hipótese de governo maioritário e declarando-se – para já – confortavelmente instalado numa situação de oposição. No entanto, depressa perceberá que esta posição passiva poderá trazer-lhe danos políticos irreparáveis a longo prazo.
Ao contrário do que tanto se apregoa, como uma terrível tragédia institucional, o que agora não há em Espanha, depois das eleições de domingo, é confusão política, impossibilidades aritméticas, uma “Itália à antiga” ou ingovernabilidade. Nada disso. O que está em cima da mesa de autópsias, para remoção, são os restos putrefactos do franquismo, que têm de ser enterrados de vez e dar lugar à nova Espanha como país reflectindo a sua mais rica realidade: a diversidade nacional.

sábado, 19 de dezembro de 2015

VEJA COMO ISRAEL SALVA TERRORISTAS DO ESTADO ISLÂMICO



Há pouco mais de uma semana descrevi aqui a situação de Mohamed Suleiman, um garoto palestiniano com 15 anos detido quando tinha 13 sob a acusação de atirar pedras numa estrada da Cisjordânia reservada a ocupantes – militares e colonos israelitas –, e agora condenado a 15 anos de prisão por 25 “tentativas de assassínio”. Pena que poderá tornar-se perpétua se até 26 de Janeiro a família não pagar uma multa de sete mil euros.
Compreendo que esta farsa de justiça e a correspondente agressão aos mais elementares direitos humanos possa ter indignados os leitores. Na verdade, actos de tortura, arbitrariedade e violência gratuita contra crianças cometidos por Israel, um Estado com elevada cotação na bolsa de civilização, liberdades fundamentais e guerra contra o terrorismo que serve de padrão à União Europeia e à NATO, deixam a inquietante sensação de que o Estado confessional hebraico não é aquilo que parece e diz ser.
Para desfazer a má impressão que esse episódio terá deixado vou dar-vos informações que ilustram como Israel é um Estado, por vezes, com elevadas preocupações humanitárias. Um jornalista ao serviço da versão online do britânico Daily Mail acompanhou uma operação de um grupo de comandos israelitas que, na calada da noite, socorrem feridos da guerra civil síria de modo a que sejam assistidos em hospitais israelitas e depois devolvidos ao teatro de guerra. Um desses feridos, cuja vida é salva graças aos procedimentos médicos de urgência israelitas acompanhados pela reportagem do Daily Mail – velha publicação conservadora britânica – é um “combatente anti-Assad” por sinal membro do Estado Islâmico, ou Daesh, ou ISIS, actual inimigo público nº 1 da “civilização ocidental”. Em linguagem sem rodeios, a reportagem mostra o salvamento de um terrorista por forças especiais israelitas, ocorrência tão politicamente incorrecta, na aparência, que leva o jornalista a enquadrá-la no âmbito da conhecida máxima “os inimigos dos nossos inimigos nossos amigos são”.
No caso, como vamos sabendo, nem seria preciso recorrer a sentenças tão arcaicas, uma vez que há generais norte-americanos sem dúvidas de que Israel está entre os criadores do Estado Islâmico. Já se sabia também que este grupo terrorista tem um santuário nos Montes Golã ocupados por Israel à Síria, onde dispõe de instalações hospitalares facultadas pelo exército com meios de evacuação para hospitais israelitas, nos casos mais graves. Há fotos do primeiro-ministro Netanyahu visitando feridos da mais recente versão de “combatentes da liberdade” tratados no seu país, mas nenhum documento é tão revelador dessa colaboração como o vídeo do Daily Mail. De acordo com a mesma fonte, aliás, esta humanitária legião israelita de boa vontade já salvou assim mais de 2000 vidas entre os terroristas injectados na Síria, e sem distinção de filiação: Estado Islâmico, Al-Nusra, que é o mesmo que dizer Al-Qaida e, ao que consta, até mesmo “moderados”, os que são oficialmente pagos pelos Estados Unidos e potências da União Europeia. O valor de 10 milhões de euros gasto até agora por Israel nesta operação é uma pechincha, tendo em conta o que o terrorismo fundamentalista islâmico representa, pelos vistos, para a segurança do país governado pelo fundamentalismo hebraico.
Para que não haja paralelismos que poderiam ser mal intencionados, um oficial israelita esclarece o Daily Mail que ocorrências deste tipo não podem ser postas em confronto, por exemplo, com o que frequentemente acontece em Gaza, onde o exército israelita asfixia e massacra populações civis indefesas. “O contexto é diferente e nós agimos de acordo com ele”, explica o oficial com uma transparência tão eficaz que todos nós entendemos: uma coisa é salvar terroristas do Estado Islâmico na fronteira com a Síria, outra é chacinar crianças, mulheres e idosos em Gaza. No fundo, porém, há uma inatacável coerência no comportamento do governo e das tropas israelitas: trata-se de uma questão estratégica de segurança do país, como sempre se ouve dizer.
Uma justificação que se aplica, como um fato feito por medida, ao episódio do jovem Mohamed Suleiman. Mas não se diga que Israel não se dedica por vezes, e quando lhe convém, a práticas humanitárias.

sábado, 12 de dezembro de 2015

O FUNDAMENTALISMO DO DÉFICE



A União Europeia continua mergulhada na estagnação, os alentos económicos que diz sentir são fogachos mortiços, ateados e mantidos por um Banco Central Europeu que faz de fogueiro a contragosto, muito mais tentado em confiar cegamente no bendito axioma de que o mercado se regula a si próprio.
Em Bruxelas, porém, quando se juntam os dirigentes europeus, tanto os maiorais como os sectoriais, a inquietação é só uma: que se respeite a meta dos 3% de défice.
A União Europeia sofre uma das maiores crises sociais dos seus tempos de vida, os níveis de desemprego continuam assustadores, o regime de austeridade faz alastrar as bolsas de miséria e pobreza como uma epidemia de peste.
No entanto, quando os representantes dos governos dos 28 se juntam para conversar uma só coisa os incomoda: que se cumpra o limite dos 3% de défice.
A União Europeia sofre a pressão provocada por uma vaga de refugiados sem comparação na sua história, onda essa resultante de guerras que a União Europeia se entreteve e entretém a alimentar paulatinamente e que agora pretende enfrentar dando passos de gigante na direcção da instauração de Estados policiais, do encerramento de fronteiras, do pagamento de fortunas a terceiros, com alma de ditadores, para que façam os trabalhos sujos em troca da agilização dos mecanismos facilitadores de adesão.
Contudo, quando os chefes de governo e ministros dos 28 se juntam para discutirem os seus assuntos um só os faz espremer as meninges e tirar dos coldres as armas das ameaças: ou se cumpre a meta de 3% de défice ou…
Os muros, as cercas electrificadas, as ordens de atirar a matar contra refugiados que podem ser terroristas e vice-versa crescem e disseminam-se através de todo o espaço europeu; dos cacos do muro de Berlim renascem barreiras que separam famílias e isolam países; com eles reforça-se a fortaleza Europa.
Porém, sempre que os dirigentes da União, imunes a essas restrições, chegam a Bruxelas para trocar umas ideias sobre os seus assuntos um só muro os apoquenta: que a barreira dos 3% de défice seja intransponível.
Os fascismos ressuscitam em toda a Europa. O regime com sustentação neonazi criado pelos Estados Unidos, a União Europeia a NATO na Ucrânia continua a desmantelar o país; o nacionalismo doentio da aristocracia húngara, no poder com a cumplicidade dos governos dos restantes 27, restaura-se como máquina de repressão, segregação e prenúncios de morte; em França a Srª Le Pen faz de Donald Trump enquanto Trump faz de Le Pen nos Estados Unidos, uma confraria que parece vender saúde; do Báltico a Paris recuperam-se as memórias, os ideários e a vocação exterminadora dos colaboradores de Hitler.
Apesar da ameaça que tal situação traz no bojo, provavelmente não passará de um fait-divers à sobremesa dos banquetes dos chefes europeus, porque o assunto que os motiva, o que agora e sempre os mantém alerta e com os dedos tensos nos gatilhos é o respeito pelo défice máximo de 3%.
Enquanto isso, a NATO pede – e quando a NATO pede é uma ordem – que os orçamentos dos Estados da União Europeia pertencentes à aliança reflictam os denodados esforços que o atlantismo distribui por todo o mundo, ao que diz com o intuito de instaurar a paz e a democracia multiplicando as guerras e expandindo o caos.
Essas exigências, helas, obrigam Bruxelas a refazer contas, mas o problema nada tem de dramático. Os dirigentes europeus estão sempre do lado das soluções e para isso cortam, voltam a cortar, e se for preciso cortam ainda mais na saúde, na educação, nos salários, na capacidade de sobrevivência das pequenas e médias empresas, nas reformas dos contribuintes. Porque os orçamentos, para o serem a valer, têm de assegurar que o défice em nada exceda o valor sagrado dos 3%.
A barreira do défice de 3% é a pedra de toque da União – a bem dizer a pedra filosofal para uns quantos. Ela é o verdadeiro segredo da existência da União, a sua razão de ser. É o disfarce de uma União federativa que não ousa assumir-se com franqueza, porque criada à revelia dos povos; significa a instauração de um regime económico comum aos 28, subalternizando-se assim a vontade dos cidadãos manifestada em urnas; é a liquidação da soberania dos Estados, porque impedidos de produzir os seus próprios orçamentos; é a transformação de 27 governos e dos povos desses países, respectivamente, em serviçais e reféns de uma moeda que apenas serve os poderosos de um único e poderoso país; é a erradicação do Estado ao serviço dos cidadãos, reduzido a facilitador da ganância dos gigantes privados e, ao mesmo tempo, impedido de proceder a qualquer investimento público capaz de beneficiar as pessoas e criar emprego.
A União Europeia irá afundar-se no caos em que vive e que continua a alimentar, fatalidade que se aproxima com celeridade porque a comunidade tem amarrado aos pés o pedregulho do fundamentalismo do défice.
A morte da União Europeia não será uma tragédia, antes pelo contrário, poderia ser uma bênção. O trágico é a probabilidade de tal ocorrer num ambiente de convulsão, ou mesmo de guerra, em que as vítimas sejam os povos - como se induz que irá acontecer.
 

 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A “PERSONALIDADE” E AS PESSOAS


 
A revista norte-americana “Time”, ponta de lança da comunicação social ao serviço do regime económico, militar e político global, escolheu a Srª Merkel como a “Personalidade do Ano”.
Nada de novo, nada a estranhar, a figura certa para a decisão certa, tanto mais que, de acordo com a definição da revista, o critério da escolha assenta na influência exercida sobre os acontecimentos do ano, que tanto pode ser “boa” como “má” e vice-versa. Por isso, o principal rival da chanceler alemã no concurso foi o sanguinário chefe terrorista Al-Baghadi, líder do Estado Islâmico; e um dos seus antecessores, homólogo e compatriota contemplado com o galardão foi o próprio Adolf Hitler. Tudo nos conformes.
Creio não haver dúvidas quanto ao teor da influência da Srª Merkel que lhe terá valido tão subida honra no país onde os serviços secretos se têm dedicado a devassar-lhe a vida e os telefonemas. Talvez a “Time” tenha tido, por isso, um insólito rebate de consciência numa instituição onde a consciência não pode nem deve beliscar objectividades, arroubo esse susceptível de ter decidido o sprint final de tão cerrada corrida em desfavor do terrorista mais famoso da era pós Bin-Laden.
A Srª Merkel venceu e devem os súbditos europeus orgulhar-se com a decisão, vinda ela de onde vem. A Srªa Merkel, a mais fundamentalista entre os fundamentalistas do défice, a prodigiosa madrinha do Tratado Orçamental e outras medidas da União Europeia para meter na ordem os madraços que desafiam a prodigiosa ordem neoliberal, a chanceler que sem fazer a guerra pela via militar conseguiu vergar toda a Europa ao poder teutónico, coisa que nem Hitler alcançara com a sua máquina infernal de morte, enfim a chanceler que conseguiu agregar 27 Estados federados à Europa depois da compra da RDA por tuta e meia, sem que a União Europeia se assuma como federação, merece, sem dúvida, a honrosa capa da “Time” que também já pertenceu a Bin-Laden e Obama. Por “boa” ou “má” influência? Os mercados, os banqueiros e outros magnatas, os generais da NATO, os dignitários fascistas ucranianos e de outros tugúrios europeus, os trauliteiros e mentirosos que depois de arrasarem o Afeganistão, o Iraque e a Líbia insistem em fazê-lo na Síria, destacadas figuras pacifistas e humanitárias como o Sr. Netanyahu de Israel não têm quaisquer dúvidas sobre a bondade e a clarividência da senhora. Que importam as vagas de refugiados provocadas por guerras que ela contribui para sustentar, mesmo violando a Constituição do seu país? Que mal tem a expansão da pobreza, da miséria e da humilhação na Europa atrelada à austeridade que ela cultiva com o amor de quem extermina as ervas daninhas no seu bem-aventurado jardim? A “Time” nada tem a ver com isso, o seu jornalismo zela apenas pela ordem estabelecida – onde o terrorismo, até o intelectual, cabe a preceito – no fundo a tecnocracia da influência nada tem a ver com o “bem” ou o “mal”. Não sabemos nós, por experiência própria, que o “mal” pode servir de “bem” e vice-versa, tudo dependendo das circunstâncias e dos interesses, digamos, mais influentes?
A “Time” limita-se a escolher a “Personalidade” e não tem a ver com o desprezo dessa “Personalidade” em relação às pessoas. Isso não conta para nada, tal como a opinião dos leitores da própria “Time”, que assim aprendem a comer e calar como democraticamente deve ser.
Para que conste: no processo que culmina com a capa expondo a “Personalidade do Ano”, que anteriormente se chamava o “Homem do Ano – há que acompanhar os aggiornamenti ditados por essas coisas modernas de género – os leitores da “Time” são chamados a escolher os seus ou as suas favoritas. Neste ano, por exemplo, nenhum dos nomes mais votados pelos leitores foi incluído pelos serviços de selecção da “Time” na ilustre “short list” final que conduziu à coroação da Srª Merkel.
O mais votado dos leitores foi Bernie Sanders, um dos candidatos democráticos à Presidência, Senador pelo Estado de Vermont. Bernie Sanders que defende um serviço de saúde universal e gratuito nos Estados Unidos - achando muito curta a reforma de Obama; que foi contra as guerras desde o Vietname ao Iraque, que denuncia as cumplicidades do poder norte-americano com os grupos terroristas, que defende uma reforma da comunicação social de modo a que deixe de ser um mero poder dos grandes grupos económicos, que apoia a energia limpa e se bate contra o aquecimento global, que alerta contra os perigos dos transgénicos, que contesta a política de golpes e de “quintal das traseiras” na América Latina, que tem o atrevimento de sugerir uma auditoria ao Banco Central (Reserva Federal, FED).
Mas em que mundo julgam estar os leitores da “Time” que sugeriram maioritariamente este Bernie Sanders? Um mundo para as pessoas ou o mundo de “Personalidades” como a Srª Merkel ou o Sr. Al-Baghdadi?  
 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O CASO BÁRBARO DE MOHAMED SULEIMAN




Poucos conhecerão as notícias abjectas sobre Mohamed Suleiman nestas horas em que tanto se fala de terrorismo, barbárie e selvajaria como contraponto à nossa superioridade civilizacional plena de virtudes e bênçãos divinas, provenham elas de entidades supremas ou dos não menos supremos mercados.
Não, Mohamed Suleiman não é nenhum dos bandidos armados que praticaram as chacinas de Paris ou Madrid ou Nova Iorque, ou decapitaram um qualquer “cidadão ocidental”; estes são os verdadeiros terroristas, assim definidos pelos lugares onde actuam e as vítimas que provocam, mas de que ninguém ouviria falar entre nós caso se ficassem pelos massacres simultâneos de centenas de sírios e iraquianos, previamente forçados a cavaram as valas comuns para nelas partirem em busca da eternidade, porque isso era assunto lá entre eles, entre bárbaros, que não encaixa nos padrões exigentes e ilustrados de direitos humanos.
Mohamed Suleiman tem 15 anos, é um adolescente palestiniano de Hares, perto de Nablus, na Cisjordânia, detido numa masmorra israelita desde os 13 anos por “atirar pedras”, pecado gravíssimo porque cometido numa estrada reservada a colonos – a designação verdadeira, ocupantes, é politicamente incorrecta – exemplo das obras públicas israelitas que institucionalizam um civilizado regime de apartheid um quarto de século depois de o apartheid original ter sido extinto.
As autoridades israelitas foram buscar Mohamed Suleiman a casa há dois anos, não havendo qualquer flagrante a invocar, e mantiveram-no na cadeia até completar 15 anos. Torturaram-no, juntamente com mais quatro jovens, até confessarem o crime de “atirar pedras” e agora, que já tem idade para ser “julgado”, um tribunal militar israelita condenou-o a 15 anos de prisão por “25 tentativas de assassínio”, judiciosa versão da acusação original baseada no arremesso de calhaus; mas se a família não conseguir pagar uma multa de sete mil euros até 26 de Janeiro a pena transforma-se automaticamente em prisão perpétua. Como os parentes do garoto não têm esse dinheiro – vivem sob ocupação numa terra submetida à violência sádica e fundamentalista dos colonos, espoliados de todos os meios de sobrevivência pelo Estado de Israel - Mohamed Suleiman corre o sério risco de passar o resto dos seus dias que vão para lá dos 15 anos, idade dos sonhos para os adolescentes livres, numa masmorra às ordens dos civilizados esbirros ocupantes.
Esta é a história de Mohamed Suleiman. Ela não corre nos nossos tão informados telejornais, nos nossos periódicos ditos de referência, nas nossas rádios inundadas de cachas, apesar de tais meios não descansarem um segundo na denúncia do terrorismo, do terrorismo mau, pois claro, mas onde deveria caber, por simples misericórdia, um cantinho para Mohamed Suleiman, ao que parece insuspeito de ser do Estado Islâmico ou da Al-Qaida, cujos mercenários às vezes podem ser terroristas, outras nem tanto, depende.
Tão pouco a ONU, a UNICEF, a omnipresente e justiceira NATO, a democratíssima e vigilante União Europeia, tantos observatórios e organizações não-governamentais parecem conhecer a barbárie terrorista de que é vítima Mohamed Suleiman e os seus companheiros. Já me esquecia das boas razões para tal alheamento: Israel, tal como esse farol da democracia que é a Arábia Saudita e também a fraternal Turquia, agora às portas da União Europeia desde que sirva de tampão à entrada de refugiados na Europa, enquanto nutre bandos terroristas, são exemplos brilhantes de civilização e de respeito pelos direitos humanos. Os amigos e aliados jamais praticam terrorismo, tratam da nossa “segurança”.
O caso de que são vítimas Mohamed Suleiman e os cinco de Hares é um exemplo de terrorismo puro e duro, sem adjectivação porque o terrorismo é um fenómeno único, não existem terroristas bons ou maus, civilizados ou bárbaros. Mas esta é uma tese vinda dos bas-fonds da teoria da conspiração, não conta para a vida nos nossos dias.
Ainda sobram no mundo, porém, algumas organizações solidárias que, enquanto denunciam esta aberração selvática, procuram, para já, ajudar a reunir os sete mil euros necessários para tentar travar, no mínimo, a perpetuidade da prisão do jovem.
Quanto ao resto, a história de Mohamed Suleiman e tantas outras histórias que preenchem o quotidiano trágico de Jerusalém Leste, Cisjordânia e Gaza, as histórias de degredos, demolição de casas, assassínios selectivos, escolas e hospitais arrasados, asfixia económica, privação de água e energia, checkpoints e rusgas arbitrárias, muros e outras formas de segregação física e psicológica, mais não é do que exposição da hipocrisia terrorista pela qual se guia a chamada “comunidade internacional”.
Agora que a bandeira da Palestina, Estado fantasma, ondula junto ao palácio de vidro da ONU as boas consciências dos nossos civilizados e democráticos dirigentes sentem-se apaziguadas. Casos escabrosos de terrorismo como o de Mohamed Suleiman poderia, é certo, mascarar essa “paz” tão laboriosamente aparentada, mas que não haja problema: varre-se para o fundo dos tapetes da diplomacia e do desconhecimento, com a prestimosa colaboração do amestrado aparelho de propaganda.
 

 

domingo, 6 de dezembro de 2015

PETRÓLEO DE SANGUE


Camiões cisterna na fronteira entre a Síria e a Turquia
O chamado Estado Islâmico, ou ISIS, ou Daesh – um dos muitos heterónimos da rede terrorista mundial de índole “islâmica” – é uma espécie de inimigo público nº 1, autor putativo de toda e qualquer acção de violência que seja praticada, monstro de mil e uma cabeças que atingiu uma dimensão criminosa dir-se-ia imbatível e que, para admiração geral, nasceu do nada, ninguém apoia, nem sustenta, nem financia, nem arma, nem protege, nem dele se serve. O terror dos terrores nasceu por geração espontânea, de um ovo vazio, de um ventre estéril.
A Al-Qaida, por exemplo, teve um embrião, um lugar de gestação e nascimento, procriadores conhecidos. Fale-se em CIA, MI6, serviços secretos paquistaneses e sauditas, Afeganistão, Bin Laden e resumem-se os primórdios da rede que haveria de simbolizar o terrorismo mercenário “islâmico” até à emersão relampejante do Estado Islâmico.
Em relação a este sabe-se, por exemplo, que o general norte-americano Wesley Clark, antigo comandante supremo da NATO, acusa os próprios Estados Unidos e Israel de terem as mãos sujas na sua origem. Clark deve saber do que fala, não só pelo cargo que ocupou como pela folha de serviços pouco recomendável no processo de invenção do Kosovo.
Digamos que estas informações, mesmo significativas, são avulsas: faltam dados globais que ajudem a sistematizar o processo de criação e desenvolvimento de uma seita terrorista que conseguiu avançar num ápice do Leste da Síria quase até Bagdade, a capital do Iraque, ao mesmo tempo que se coligava com os nazis ucranianos para tentarem destruir o Leste da Ucrânia e “libertar” a Crimeia, ao mesmo tempo que pretende desmantelar a Síria, manter o caos na Líbia, solidificar o “califado” proclamado em vastos territórios sírio e iraquiano, onde controla o generoso maná petrolífero de Mossul, “capital” dos curdos do Iraque.
Petróleo, uma palavra-chave para se conhecer o ISIS, como agora se vai sabendo no meio de um ruído de comunicação gerado para que a realidade se dissolva na mentira, como muitas vezes acontece neste mundo quando os assuntos são problemáticos e as cumplicidades incómodas.
O ISIS ou Estado Islâmico vive e desenvolve-se a petróleo, petróleo de sangue tendo em conta as suas actividades. Há elementos suficientes para não existirem dúvidas de que os seus principais financiadores são petroditaduras como a Arábia Saudita e o Qatar, íntimos aliados militares, políticos e económicos de entidades que se consideram faróis da civilização como os Estados Unidos da América e a União Europeia.
Sabe-se agora também, desde que as tropas russas empenhadas em salvar a Síria como país o denunciaram com provas abundantes, que o ISIS ou Estado islâmico se financia através de contrabando de petróleo que “lava”, por exemplo, através da chancela oficial da região autónoma do Curdistão iraquiano.
É surpreendente que não tenhamos sabido deste processo antes de os russos se envolverem na Síria, porque os movimentos deste contrabando nada têm de discretos aos olhos da nuvem de satélites. Envolvem comboios de 8500 camiões cisterna por dia em direcção a portos e refinarias da Turquia – membro da NATO como todos sabemos – entrando neste país a partir de regiões ocupadas pelo Estado Islâmico na Síria e sem qualquer controlo fronteiriço das autoridades turcas. Na Turquia, o extenso e quotidiano desfile cai sob o controlo da mafia do “dr. Farid”, de dupla nacionalidade grega e israelita, e de outras mafias de outros drs. Farids, seguindo depois a mercadoria para o mundo a partir de portos israelitas e turcos. Ao que parece, segundo o Financial Times, Israel assegura assim cerca de três quartos das suas necessidades energéticas. Cada barril de petróleo clandestino é traficado a cerca de metade do preço dos mercados – até estes são burlados – proporcionando ao Estado Islâmico receitas por baixo de 3,2 milhões de dólares por dia, quase cem milhões por mês, mil e duzentos milhões por ano. O movimento envolve também navios de bandeira japonesa da empresa BMZ pertencente a Bilal Erdogan, filho do presidente da Turquia Recepp Tayyp Erdogan, e a outros membros da família. Acresce que parte do petróleo roubado na Síria e no Iraque transita através da região de Sanliurfa na Turquia, onde funcionam campos de treino da Al-Qaida e do Estado Islâmico e existe também um hospital clandestino para tratar terroristas feridos em combate na Síria, por sinal gerido pela senhora Summyie Erdogan, filha do presidente turco e irmã de Bilal. A família presidencial de Ancara, que a União Europeia encarregou agora de travar o fluxo de refugiados em troca de mais uns milhares de milhões de dólares e da promessa de adesão à confraria, desmente a pés juntos estas realidades, tal como negou ter negócios ilegais e acolher frequentemente o príncipe saudita conhecido por ser o tesoureiro da Al-Qaida. Facto mais do que confirmado pela comunicação social turca e que esteve na origem de um saneamento brutal nos aparelhos judicial e policial, vitimando quem tinha as provas e os responsáveis pelas investigações e processos.
Ocorrendo estas práticas terroristas sob o chapéu de um membro da NATO não será difícil perceber as razões pelas quais o tráfico de petróleo em favor do Estado Islâmico tenha sido poupado durante mais de um ano pela “guerra” que os Estados Unidos dizem conduzir contra esse mesmo grupo terrorista. Até ao dia em que Moscovo demonstrou os factos durante a cimeira do G20 e o Pentágono decidiu agir pontualmente, tal como a França fez a seguir aos atentados de Paris, violando aliás a soberania síria porque ambos o fizeram à revelia do governo de Damasco.
Porque os resultados das investigações às vezes também são como as cerejas, conhecem-se agora outras fontes de financiamento do Estado Islâmico: o tráfico de escravos sexuais, assaltos a bancos da Síria e do Iraque, mercado negro de produtos cultivados nas terras férteis que confiscou no interior do “califado”. Mas as chaves da sua existência e da sua actividade são o petróleo de sangue em conjunto com enredadas cumplicidades onde avultam pessoas e entidades que se miram ao espelho e nos ecrãs como gente de bem e assim entendem defender o nosso “civilizado modo de vida.”
 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

NATO ANEXA PENÍNSULA BALCÂNICA


Distribuindo democracia desde 1949

A NATO, ou seja, o braço armado do império norte-americano, acaba de engolir mais um Estado europeu, o Montenegro, sendo que para abocanhar toda a antiga Jugoslávia faltam o que resta da Sérvia e a Antiga República Jugoslava da Macedónia.
Em termos formais, trata-se apenas de um “convite” dos falcões do Pentágono ao pequeno Estado banhado pelo Adriático e cercado pela Bósnia, a Sérvia, a Croácia e a Albânia, mas como o presidente montenegrino se declarou “orgulhoso” perante o chamamento este é um dos tais casos em que podem fazer-se prognósticos antes do fim do jogo, sem risco de errar. Com a inclusão do Montenegro na teia de bases militares imperiais formada pelos países da Aliança Atlântica, são já 12 as nações e regiões do antigo “mundo socialista”, com ou sem influência soviética, engolidas pelo expansionismo do Pentágono desde que a NATO ficou sozinha na arena mundial: Albânia, Croácia, Bulgária, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Letónia, Lituânia, Hungria, Polónia e República Checa – mais de 40 por cento do número de membros da estrutura. Não será exagero somar a esta lista os territórios da Bósnia-Herzegovina, do Kosovo, e da região Oeste da Ucrânia, simples protectorados da aliança.
Ouvindo os analistas que tudo sabem dir-se-á que o “convite” ao Montenegro é uma espécie de gesto generoso e de boa vontade dos generais da NATO para com um país minúsculo, montanhoso, economicamente dependente e sem qualquer interesse militar, a não ser representar mais uma espinha cravada nas gargantas da Rússia e da Sérvia. Talvez os estrategos se tenham esquecido de olhar os mapas, ou então fazem deles uma leitura descuidada. A integração do Montenegro fecha o Adriático como lago atlantista, facilita rotas entre o Mediterrâneo e a Europa Central e de Leste contornando agora a Sérvia, tal como já acontecia com a Macedónia (efeito do Kosovo), fecha o conjunto de países formado pela Grécia, Albânia, Montenegro, Bósnia, Croácia e Eslovénia como um arco da NATO. Em termos geoestratégicos liquida-se o que restava da antiga Jugoslávia a favor da aliança expansionista. Milhões de mortos e feridos depois, no seguimento de chacinas sanguinárias resultantes de guerras artificiais e induzidas a partir do exterior, a inclusão de facto do Montenegro na NATO é o passo decisivo para a anexação da Península Balcânica pelo insaciável atlantismo.
Tal como por exemplo o Kosovo – a quem países da União Europeia pedem agora que não sustente e não dissemine o jihadismo, manhoso eufemismo para não dizer terrorismo – o Montenegro de hoje tem tudo para ser membro da NATO. Não consta que o “orgulhoso” presidente Filip Vujanovic se prenda com o formalismo de organizar um referendo popular sobre o assunto, sobretudo depois do susto com a consulta sobre a independência, declarada em 2006 por meia dúzia de votos duvidosos depois de sucessivos adiamentos, por causa das sondagens desfavoráveis. Além disso, o regime escolheu o euro como moeda depois de ter usado o marco durante parte do período em que a Jugoslávia se fragmentou. Também a corrupção praticada pela casta dominante e o governo do primeiro-ministro Dukanovic, sobretudo o chamado “Escândalo Moldavo” – tráfico de mulheres com epicentro no território montenegrino – parece não incomodar os dirigentes atlantistas e dos Estados membros da democrática aliança. O que é natural em entidades que conhecem as actividades do vizinho e islamita Kosovo nos ramos do apoio ao terrorismo, tráfico de drogas e comércio clandestino de órgãos humanos, tudo a bem da liberdade e da democracia.
Não é difícil nem abusivo estabelecer paralelos entre o novo mapa dos Balcãs e o também designado “novo mapa” que membros da NATO, com os Estados Unidos à cabeça, procuram estabelecer no Médio Oriente. O desmantelamento e a destruição de países como o Iraque, a Líbia e a Síria reflecte o mesmo método usado contra a antiga Jugoslávia logo que ruiu o muro de Berlim: declaração de guerras artificiais sem olhar a meios, e muito menos à vida humana, para concretizar os fins da estratégia imperial de expansão e dominação. No Médio Oriente, Afeganistão incluído – onde a NATO deu o dito por não dito e decidiu agora manter 12 mil ocupantes -, o número global de mortos já atingiu quatro milhões; quatro milhões foi também o número de desalojados na antiga Jugoslávia, onde se registaram pelo menos 140 mil mortos.
Enfim, o combate “civilizacional” tem os seus danos colaterais, a tanto monta a defesa intransigente do “nosso modo de vida” assumido pela valente Aliança Atlântica de motu próprio, sem que os cidadãos sejam tidos e achados. O que aconteceu na Jugoslávia é disso uma lição de história moderna.  
 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

TRÁFICOS


 
As negociações em curso entre o regime fundamentalista islâmico e pró-terrorista da Turquia e a União Europeia podem resumir-se numa palavra: tráfico.
Tráfico de conveniências inconfessáveis, tráfico de influências, tráfico de seres humanos desprotegidos, tráfico de mentiras. Nada que tenha a ver com democracia e muito menos com direitos humanos.
É impossível que os dirigentes da União Europeia e dos 28 Estados membros desconheçam o regime autoritário e corrupto de Erdogan, família, amigos e comparsas, o seu apoio aos mais sanguinários dos grupos terroristas – Estado Islâmico e Al-Qaida -, a sua perseguição à minoria curda, o modo como falsifica eleições, o processo de instauração gradual de uma ditadura político-religiosa. Impossível, entre outras razões, porque a Turquia é membro da NATO e, hoje em dia e cada vez mais, o que diz respeito à NATO di-lo também em relação à União Europeia.
Relembro agora alguns argumentos que fazem parte da história da União Europeia e que até agora têm travado, ano-após-ano, as negociações para admissão da Turquia na comunidade dos 28. O principal obstáculo invocado tem sido o das contradições entre o regime turco e as normas democráticas exigidas pela União Europeia, pesem embora os “passos” que em Bruxelas se admite terem sido dados por Ancara em direcção à democracia, isto antes da entrada e enraizamento no poder dos fundamentalistas islâmicos “moderados” de Erdogan & Cia. Outro inconveniente muito conhecido, esgrimido principalmente por xenófobos “democratas-cristãos” do Partido Popular Europeu, é o de que a Turquia não se enquadra no perfil cultural, religioso e civilizacional da União Europeia. Além disso, argumenta-se, a Turquia não é apenas um país europeu, cultiva estruturas económicas que não se compadecem com o liberalismo imposto no interior da União, na Turquia permanecem estruturas desrespeitadoras da “economia de mercado”, sem contar com a perseguição à minoria curda, grosseira violação dos direitos humanos.
Isto era o que se argumentava até agora. Assim se escondendo, convenientemente para quem usa a União Europeia a seu belo prazer, como é o caso da Alemanha, as verdadeiras e incómodas razões, que têm a ver com a dimensão geográfica, demográfica e económica da Turquia e o impacto da livre circulação dos cidadãos turcos no espaço comunitário.
A situação alterou-se de uma penada. O que ontem era argumento contra tornou-se vantagem de hoje, tudo se mantendo enovelado em mentiras enquanto se desenvolve uma descarada traficância.
A Alemanha e o séquito de dirigentes que segue a senhora Merkel como se fora o flautista de Hamelin redescobriram a Turquia como um prometedor membro da União, a prazo muito mais curto do que antes se dizia embora Ancara esteja agora muito mais próximo da ditadura político-religiosa do que há cinco, dez anos. Para isso, de acordo com os raciocínios interesseiros de Bruxelas, Berlim, Paris e Londres, deve a Turquia travar o fluxo de refugiados para o espaço comunitário no quadro do combate “à praga”, como diz o senhor Cameron, e das medidas correspondentes ao estado de lotação esgotada de imigrantes, como invoca o também xenófobo Manuel Valls, primeiro ministro de Hollande em França.
Em troca desses úteis e bons serviços dispõe-se a União Europeia a bonificar a Turquia em mais de três mil milhões de euros – provavelmente a extorquir aos contribuintes dos 28 – e a acelerar com o regime de Ancara o processo de negociações para a admissão plena.
Toma-lá-dá-cá. Onde antes se invocavam a democracia e os direitos humanos deixaram de ser inconvenientes algumas realidades turcas, como a violação flagrante de normas democráticas, a repressão sem dó de minorias, o uso e abuso do confessionalismo como regime político, o apoio comprovado da Turquia aos mais cruéis dos grupos terroristas, que, por sinal, a União Europeia diz combater. Na União Europeia nenhum dirigente ignora que o regime turco infiltra mercenários ditos “islâmicos” na Síria, arma, financia e treina bandos do Estado Islâmico e da Al-Qaida, mantém em actividade serviços de recrutamento de terroristas em todo o mundo.
No fundo, nada disto destoa. A União Europeia que trafica nestes termos com a Turquia é a mesma que dispara troikas contra os povos dos países membros menos favorecidos, a mesma que invoca poder de veto sobre os orçamentos dos Estados nacionais.
Na União Europeia, a exemplo do que acontece na Turquia, há muito que os princípios deixaram de vigorar. O que conta são os fins, ao alcance de um qualquer diktat e de oportunos tráficos de conveniências.