O ano de 2015 foi nefasto para a União Europeia, certamente
o mais letal para aquilo que alguns designam ainda, com piedosa boa vontade,
como “projecto europeu”.
A responsabilidade pelo desastre deve ser assacada por
inteiro, mesmo em assuntos que parecem de origem externa ao espaço europeu –
como é o caso da tragédia dos refugiados – aos dirigentes de Bruxelas e aos dos
Estados nacionais. Já não havia quaisquer ilusões sobre o destino desastroso de
tal “projecto”, porque o que torto nasce tarde ou nunca se endireita e, além
disso, ao longo de gerações, os sucessivos dirigentes europeus entretiveram-se
a entortar anda mais as intenções, já de si falaciosas, dos “pais fundadores”,
apurando sem pudor as mentiras originais.
No ano de 2015 convergiram, como nunca, os factores que
vinham correndo mal e os que explodiram entretanto nas mãos aventureiras,
oportunistas e irresponsáveis dos dirigentes europeus – aliás tanto mais
irresponsáveis quanto mais elevada a responsabilidade que desempenham. Uma
catástrofe.
Comecemos pela crise económica, que só na demagogia primária
e na descarada manipulação das estatísticas parece no caminho da solução. Nada
disso: a economia não sai da estagnação e o modelo político inventado para dar
cobertura a um regime que coloca a produção económica como subsidiária da
especulação financeira está a rebentar pelas costuras. Como sabem, esse modelo
político é a asfixia democrática sob o poder absoluto de dois braços
partidários defensores das mesmas práticas económicas neoliberais –
conservadores e sociais-democratas. Mas o que parecia consolidar-se passo a
passo, desde o início da década de noventa, começou a explodir em 2015. Três
eleições gerais consecutivas – Grécia, Portugal e Espanha – puseram em causa o
regime dito bipolar, ou de arco da governação, ou de bloco central (bloco de
direita é a designação adequada), alterando profundamente os contornos da
“moderna” União Europeia: um sistema de dominação económica sobre mais de uma
vintena de protectorados do único país a quem verdadeiramente serve a moeda
única.
Ora o renascimento da política observado em Portugal,
Espanha e Grécia, conjugado com outras alterações de cenário em
desenvolvimento, por exemplo em França e no Reino Unido, introduziram um quase
esquecido debate político numa dominação económica presa na ratoeira dos
casinos financeiros. Isto é, no ano de 2015 confirmou-se com absoluta certeza
que os mecanismos de ditadura económico-financeira sobre a política, isto é, a
sobreposição de restrições orçamentais e monetárias sobre a soberania dos
Estados membros – o federalismo encapotado – começam a chocar com a vontade dos
povos expressa democraticamente, o que é o princípio do fim do regime em vigor.
O limite de 3% do défice, imposto pela dominação alemã
através da moeda única, trava o investimento público e paralisa a economia, sem
resolver os problemas das dívidas; e o controlo orçamental de Bruxelas impede
os países de fazerem opções económicas de acordo com os seus interesses e os
dos seus povos. Estas duas realidades estão claras aos olhos dos cidadãos, que
começaram a agir em conformidade. O modelo autoritário e austeritário está a
ruir. E os cidadãos percebem também, cada vez mais, que o investimento público
é fundamental porque a maioria do capital privado não beneficia a economia uma
vez que é desviado para a especulação e os paraísos fiscais.
Acresce que os bons ventos financeiros deixaram de soprar
porque, por muito que a massa monetária em circulação corresponda maioritariamente
a riqueza virtual, a paralisação da economia infecta o sistema bancário, como
está à vista, e expande a crise ao sistema de especulocracia. A União Europeia
está enredada na teia de funcionamento ganancioso e errático que ela própria
criou, como se a tese do “fim da história” regenerada pela corrida à guerra e
às riquezas naturais ganhasse novo alento.
Em termos de União Europeia essa estratégia foi o maior erro
da sua história, porque pode ser a causa determinante do seu fracasso absoluto.
A crise dos refugiados e os seus efeitos no continente,
somados à crise económica e social, transformaram a União Europeia numa bomba
de relógio que entrou em contagem decrescente em 2015. A União Europeia, que
nunca teve uma política de imigração muito menos terá uma política coerente e
humanitária para com os refugiados. E, no entanto, criou a crise: participou
aberta e criminosamente nas guerras que do Médio Oriente à África do Norte e
subsaariana provocaram as vagas de refugiados e também o pânico com o terrorismo.
A resposta europeia tem-se baseado nas tendências
securitárias e de criação de barricadas em forma de muros, cercas,
encerramentos de fronteiras, pagamentos a terceiros para servirem de tampão
(caso da Turquia); acoitando-se, além disso, sob a protecção expansionista da
NATO, estrutura que, sob comando norte-americano, é tão responsável como os
dirigentes europeus pelo caos em que a União Europeia está a mergulhar.
Num cenário de crise económica e social, agravado pela
tragédia dos refugiados, as tendências xenófobas, revanchistas e nazis
avivam-se de lés-a-lés na Europa, sem que os dirigentes da União pareçam
incomodados com esse imenso potencial terrorista. Pelo contrário, a
participação dos dirigentes europeus no golpe ucraniano e na consolidação da
sua componente nazi é mais um sinal da irresponsabilidade dominante. À boleia
da nazificação ucraniana, a NATO e Barack Obama encaram a possibilidade de
instalar armas nucleares na fronteira russa, provocação cuja gravidade não
necessita de ser explicada. Com a agravante de essa mesma Ucrânia ser o centro
onde se intensifica a cooperação de terrorismos que só na designação são
distintos: o nazi e o islâmico.
Do “projecto europeu” pouco resta. Para os cidadãos, noutras
condições, tal seria uma excelente notícia. O problema é que a derrocada da
grande mentira histórica que esse “projecto” foi e é vem arrastando todo o
continente para a hipótese aterradora da reaparição de provações como as que
desde há cem anos estão escritas com o sangue de dezenas de milhões de seres
humanos da Europa, e também do resto do mundo.