A
FEBRE DA DEVASSA
O escândalo já não é
novo. O que se vai renovando quase todos os dias são os dados da amplitude da
devassa a que os europeus estão sujeitos por parte da espionagem
norte-americana, com a prestimosa colaboração de espiões da União – que não
poupam nem políticos, nem empresários, nem segredos tecnológicos e industriais,
obviamente sujeitos a patentes.
O que Edward Snowden
revelou ao mundo foi apenas a ponta de um icebergue cujos volume e profundidade
crescem sem parar. Sabia-se que a National Security Agency (Agência Nacional de
Segurança) dos Estados Unidos da América é unha com carne com a sua gémea
britânica GCHQ. A imprensa e o Parlamento alemão vêm agora demonstrar que a
intimidade é extensiva aos serviços de espionagem da Alemanha, o BND, Gabinete
de Defesa da Constituição (curioso nome este), que a seu belo prazer acode às
encomendas de devassa feitas pela NSA, ao que parece sem o conhecimento sequer
dos órgãos de soberania do país. A torrente de confidências escorre pelo menos
desde 2002, tudo à sombra de um manhoso “Memorando de Entendimento” antiterrorista,
e só em Março passado a Chancelaria da senhora Merkel teve conhecimento da
trapaça.
A coisa passa-se da
seguinte maneira: a NSA envia listas de nomes, telefones, endereços
electrónicos e IP (protocolos de internet) de pessoas e empresas a espiar e o
BND coloca as suas capacidades ao serviço dos espiões norte-americanos,
partindo do princípio de que pode fazer o mesmo em sentido inverso. Diz a
imprensa alemã que o afã da NSA é imparável, chega a enviar várias listas por
dia, de tal modo que o número de entidades devassadas é da ordem das 800 mil,
incluindo políticos e cidadãos europeus de numerosas nacionalidades e também
empresas de todas as dimensões, entre as quais avulta o gigante EADS (indústria
aeroespacial, de defesa e segurança), fabricante do Airbus.
Apanhado em flagrante, o
BND alega que o número de atingidos não passa de dois mil; a comissão
especializada do Parlamento Alemão (Bundestag) já chegou aos 40 mil e a tarefa
está longe de concluída. Em sua defesa – em boa verdade nada disto tem defesa –
o BND alega que corresponde aos desejos da NSA no âmbito da boa cooperação,
receando que se levantar dificuldades deixa de ter acesso às bases de dados da
NSA. Tudo muito instrutivo, muito democrático.
Ora, como se sabe,
continua em curso a elaboração do Acordo de Comércio e Investimento Transatlântico
(o famigerado TTIP), através do qual os políticos da União Europeia se preparam
para entregar a economia e a saúde dos europeus à mais absoluta anarquia
produtiva e comercial reinante nos Estados Unidos da América, fazendo orelhas
moucas aos protestos de milhões e milhões de cidadãos e instituições da Europa.
Mete-se pelos olhos dentro que o frenesi de espionagem norte-americano é
ditado, em grande parte, pelos dividendos que o lado de lá do Atlântico
pretende retirar deste processo desequilibrado de nascença, que apenas
políticos mentirosos e sem escrúpulos podem apresentar como justo e bilateral.
No fundo, no fundo, seja
no caso do comércio e do investimento, seja no da intrusão abusiva na vida dos
cidadãos e das empresas da Europa, a lógica é a mesma da relação entre a NSA e
o BND (ou o GCHQ, ou quaisquer outros congéneres destes 28 de cócoras): o lado
americano encomenda ou ordena, o lado de cá obedece, invocando que se levantar
problemas pode deixar de ter acesso, no lado de lá, àquilo que na verdade não
tem. Chama-se a isto subserviência de simples suseranos.
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