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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A SÍRIA DEPOIS DE MUNIQUE


 
As centrais de propaganda postas em acção no âmbito do projecto de destruição da Síria, a pretexto da instauração da democracia, receberam os resultados da reunião internacional de Munique com inegável contrariedade e, desde então, lançaram uma onda de confusão e desinformação para abafar os passos no sentido da pacificação do país que foram dados na capital bávara.
Como se percebe olhando as páginas dos principais diários e semanários europeus, e dedicando alguma atenção aos serviços noticiosos radiofónicos e televisivos, os russos passaram a ser os maus da fita, violadores ostensivos de um pretenso cessar-fogo. Bachar Assad reapareceu como o demónio a quem os russos sustentam e, para que conste, os grupos terroristas como o Estado Islâmico e a Al-Qaida quase parecem pobres vítimas da clique de Damasco.
Passemos então em revista os resultados da reunião do Grupo Internacional de Apoio à Síria realizada há dias em Munique e as suas repercussões no teatro de guerra.
O grupo integra 17 países, designadamente os Estados Unidos e a Rússia, as principais potências da União Europeia, a Turquia, Israel, Qatar e Arábia Saudita. A reunião reafirmou a validade das resoluções 2253 e 2254 do Conselho de Segurança da ONU e também o acordo de Genebra de 2012, que determinam como objectivo a formação em Damasco de um governo de união nacional estabelecido por consenso mútuo – isto é, ao contrário do que países como a França e a Arábia Saudita continuam a insistir, o presidente em exercício, Bachar Assad, deverá ser parte da solução. O que Munique veio clarificar foi a exclusão dos grupos terroristas do processo de união nacional, uma vez que não depuseram as armas; pelo contrário continuam a recebê-las e a engrossar em número de mercenários, devido aos apoios logísticos e financeiros incessantes da Turquia e da Arábia Saudita.
Em termos práticos, a reunião de Munique entregou o processo negocial ao secretário de Estado norte-americano, John Kerry, e ao ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov. O negociador da ONU fica, de facto, sob a tutela destes; ao secretário-geral adjunto da ONU, Geoffrey Feltman, é retirado o dossier sírio. Esta decisão é da máxima importância: Feltman foi um dos ideólogos golpistas da Ucrânia e, como representante dos falcões neoconservadores de Washington, tem usado o cargo para sustentar, sem excepção, os grupos terroristas introduzidos na Síria. Por isso, na reunião de Munique foi deliberado que os apoios humanitários a desenvolver a partir de agora serão apenas isso: humanitários. Feltman utilizava-os para abastecer os grupos terroristas, Estado Islâmico incluído, o que está abundantemente provado.
A decisão de Munique que tem merecido os favores mediáticos como objecto de confusão, de modo dar a impressão de que as tropas russas e de Damasco estão a violá-la, é a declaração da cessação de hostilidades prevista para dentro de dias.
Na verdade, essa trégua ainda não está em vigor. Por outro lado, o acordo de Munique não só legitima a intervenção russa, iniciada em 30 de Setembro do ano passado e que alterou profundamente os dados da guerra, como salvaguarda a continuação da guerra contra quatro grupos terroristas: Daesh ou Estado Islâmico, Al-Nusra ou Al-Qaida, Ahrar el-Sham (Movimento Islâmico dos Homens Livres da Síria) e Jaysh El-Islam (Exército do Islão). O Ahrar el-Sham é apoiado pela Turquia e o Qatar, treinado por instrutores paquistaneses e tem ligações aos talibãs afegãos; O Jaysh El-Islam está subordinado à Arábia Saudita, os seus instrutores pertencem ao exército privado norte-americano Blackwater-Academi e tem ligações à Al-Qaida.
Perante este jogo de interesses percebem-se as ameaças proferidas precisamente pela Turquia e a Arábia Saudita, cujos governos se declaram prontos a invadir a Síria. O primeiro-ministro turco disse nas últimas horas que “não permitirá” a “queda” de cidades sírias fronteiriças nas mãos do exército de Damasco. Isto é, uma potência estrangeira, por sinal da NATO, declara-se disposta a impedir militarmente que o exército de um país restaure a soberania e a integridade desse país. Esta sim é uma violação grosseira do direito internacional e dos acordos já negociados sobre a Síria.
O acordo de Munique e a reafirmação da validade do acordo de Genebra de 2012 só foram possíveis com a alteração da relação de forças no cenário de guerra, decorrente da intervenção russa iniciada em 30 de Setembro e da ofensiva terrestre do exército sírio lançada em 6 de Janeiro deste ano. Em quatro meses, os aviões russos destruíram a maior parte das fábricas de armamentos e munições usadas pelos grupos terroristas, dos bunkers subterrâneos, dos depósitos de combustíveis e meios de contrabando de petróleo, centros de comando e comunicações do Estado Islâmico e da Al-Qaida. A ofensiva terrestre síria libertou várias frentes, aeroportos, vilas e aldeias na maior parte do país, com excepção dos bastiões terroristas do nordeste.
Os resultados da ofensiva russa fizeram ruir o boicote contra o acordo de Genebra de 2012, montado pelos neoconservadores norte-americanos sob a designação de “amigos da Síria”, apoiados por Alemanha, França, Reino Unido, Turquia, Israel, Arábia Saudita, Qatar e também pela Exxon-Mobil, a Blackwater-Academi e pelo fundo de investimento KKR. São fáceis de perceber a ambiguidade e mesmo a contrariedade manifestadas pelos países citados, com destaque para a França, a Arábia Saudita e a Turquia, perante o protagonismo da Rússia e dos Estados Undos chancelado na reunião de Munique, e que traduz uma pronunciada guinada da administração Obama perante o problema sírio. Esta viragem da Casa Branca não é mais do que o alinhamento com o parecer do poderoso grupo de pressão Rand Corporation, que já no Outono de 2014 chegara à conclusão de que a integridade territorial e a pacificação da Síria, com um governo estável em Damasco, é a solução mais favorável aos interesses dos Estados Unidos.
Não é a Rússia que viola os acordos que vão sendo estabelecidos sobre a Síria; é a União Europeia que, mais uma vez, está a perder o comboio, atrelando-se desta feita às ditaduras islâmicas da Turquia, Arábia Saudita e Qatar e, na prática, aos seus ramos terroristas em acção. Entretanto, o primeiro ministro de François Hollande, Manuel Valls, conseguiu inscrever o estado de emergência na Constituição do país da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Diz ele que é para “combater o terrorismo”.
 

2 comentários:

  1. Bem elaborada a retrospectiva que está a obrigar Barack Hussein Obama a sair do pântano, deixando nele a UE...

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  2. A Síria de Bashar Assad não era nem é uma democracia, mas era e é um estado laico, o que no contexto dos Estados de profissão de fé islâmica já não é nada mau mau.
    A Arábia Saudita, que eu saiba, também não tem nada de democrática e constitui mesmo uma ameaça profunda aos direitos humanos e muito em particular aos direitos das mulheres enquanto direitos humanos. Além disso há fortes suspeitas de que pactua com fundamentalismos e terrorismo. Mas aí o Ocidente não tem nada a dizer, nada a recriminar, considera-a mesmo uma potência aliada. Sinceramente, mesmo entendendo a política em termos de estratégia, pergunto, onde é que a Europa e os Estados Unidos pretendem chegar com estas políticas que a mim me parecem não só estúpidas como sobretudo muito perigosas?
    O seu texto revela conhecimentos sobre esta embrulhada situação muito interessantes e com certeza importantes, mas será que você não podia em síntese referir o que é que está por detrás desta embrulhada, deve haver alguma racionalidade nisto, não? ou será que estamos (ocidente em estado de desagregação total a começar pela menta?

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