É provável que ao estabelecerem
o recente e vergonhoso acordo com o regime turco sobre os refugiados os
dirigentes europeus não se tenham apercebido do longo e trágico alcance da sua
medida oportunista. Ao colocarem-se ao dispor do poder de chantagem de Recep
Tayyp Erdogan, o presidente da Turquia, deixaram não apenas a União Europeia,
mas todo o continente, à mercê de um dos principais patronos do terrorismo
islâmico, um ditador que vem seguindo metodicamente uma via de poder absoluto e
cujas ondas de choque não serão contidas no interior das fronteiras do seu
país.
Erdogan não é um político, é
um homem que crê ter uma missão superior. “A democracia é um eléctrico que
apanhamos para nos levar até onde queremos, e depois descemos”, disse há 20
anos este homem que chefia um regime de índole totalitária, em relação ao qual
a NATO não manifesta qualquer reserva, antes pelo contrário. Agora que chegou à
presidência turca, em eleições adulteradas e nas quais dispôs do incentivo de
dois milhões de euros doados pela ditadura da Arábia Saudita, Erdogan já
suprimiu da comunicação social as vozes incómodas e, do palácio branco das mil
e uma noites que fez erguer, prepara-se para consolidar a ditadura islâmica
interna e institucionalizar, sem quaisquer limites, a marginalização da minoria
curda.
De Erdogan sabemos, por
exemplo, que tem um convívio habitual e familiar com Yassin al-Qadi, o príncipe
saudita conhecido, pela própria ONU, como o “banqueiro da al-Qaida”, ligação
que chegou a ser denunciada pela justiça e a polícia turcas, o que custou o
saneamento imediato de todos os envolvidos; sabemos que tem dado guarida à
logística do terrorismo no Médio Oriente, “moderado” ou “radical”, assegurando
condições para o treino, armamento e infiltração na Síria, ou o transbordo
aéreo para outros países, da Líbia ao Iémen, de milhares de mercenários
islamitas que tanto podem servir o “Exército Livre da Síria”, como a Al-Nusra,
heterónimo da al-Qaida, como o Estado Islâmico e os seus heterónimos, conforme
calha ou lhe convém; e também sabemos que a Turquia é o entreposto privilegiado,
com envolvimento de navios fretados por Bilal, filho de Erdogan, do petróleo
roubado pelo Estado Islâmico, sobretudo no Curdistão iraquiano, e de cujo
contrabando tira proveito para financiar os seus massacres.
O que talvez muitos
desconheçam sobre Erdogan é de onde vem o seu espírito de missão. Ele é oriundo
da milícia Milli Gorus, a organização dos “lobos cinzentos” fascistas a que
pertencia, por exemplo, Ali Agca, que tentou assassinar o Papa João Paulo II em
1981. Os supremacistas formados nessa milícia pan-turca consideram-se herdeiros
dos hunos de Átila e do espírito duro e insensível do lobo das estepes da Ásia
Central, características de uma raça pura e superior que adoptou os Islamismo
como instrumento de expansão e afirmação. Entre esta maneira de pensar e o
arianismo de Hitler descubra as diferenças.
O espírito pan-turco tem-se
manifestado regularmente na História do país pelos massacres de não-turcos,
como os cometidos pelo sultão Abdulhamid II, no final do século XIX, e pelos “jovens
turcos” – apesar do seu carácter secular – contra os arménios e outras
comunidades de cristãos, entre 1915 e 1923. Erdogan crê chegado o seu momento,
e o alvo preferencial são agora os curdos.
Foi a este homem, aliás com as
costas sempre bem protegidas pela NATO, que os dirigentes da União Europeia
entregaram a Europa em troca da contenção dos refugiados e do seu repatriamento
à força, violando essas coisas anacrónicas como são o direito internacional e
os direitos humanos. Erdogan exigiu a Bruxelas três mil milhões de euros por
ano para conter os refugiados da guerra da Síria, mantendo o poder
discricionário de lhes abrir ou fechar as fronteiras europeias quando lhe interessa,
e a verba foi garantida. Os chefes europeus asseguraram-lhe ainda que vão
acelerar a integração turca na União e suprimiram os vistos de circulação com a
Turquia. Os operacionais da al-Qaida ou do Estado Islâmico passam, deste modo,
a mover-se muito mais facilmente, por exemplo, entre o Oriente e Bruxelas, ou
Paris, ou qualquer recanto europeu.
Aliás nota-se que o regime
turco dispõe já de um agudo poder premonitório sobre acontecimentos trágicos na
Europa. O diário Star, órgão oficial do erdoganismo, encheu a capa com a
manchete “A Bélgica Estado terrorista” na manhã de 22 de Março, isto é, em
simultâneo com os atentados de Bruxelas. A acusação do jornal baseia-se no
facto de a Bélgica acolher comunidades curdas e autorizar as suas manifestações
contra a opressão turca.
Enquanto impõe a austeridade
feroz contra os povos europeus, a União Europeia passa a entregar três mil
milhões de euros por ano ao fascista Erdogan, a fundo perdido e sem garantias.
Juncker, Donald Tusk e os chefes dos governos da União não podem garantir-nos,
a partir de agora, que esses três mil milhões não sirvam para financiar atentados
cometidos pelos protegidos de Erdogan, chamem-se Estado Islâmico, al-Qaida ou “moderados”,
algures, a qualquer momento, em qualquer lugar da Europa.
Pelo que somos forçados a
concluir que a famosa “guerra contra o terrorismo” nos principais Estados
europeus serve, em primeiro lugar, para impor, paulatinamente, uma sociedade
policial.
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