Nakba, palavra árabe que significa catástrofe, começou
há 67 anos e ainda não acabou. É o holocausto de todo um povo, o povo da
Palestina, cometido sem parança pelas décadas fora e vitimando já milhões de
seres humanos através de perdas de vidas, bens, raízes, em suma, dos direitos
humanos fundamentais.
Há 26 anos, no campo de refugiados palestinianos de
Deishe, nos arredores da cidade de Belém, um homem com mais de 80 anos, o
patriarca de uma família que nos acolheu por umas horas, ausentou-se sem darmos
por isso. A grande actriz Maria de Céu Guerra lembrar-se-á por certo deste
episódio, porque também fez parte dele e quem o viveu jamais poderá esquecê-lo.
Quando o homem reapareceu trazia em cima de uma almofada uma chave enorme,
daquelas que rangem nas fechaduras antigas das memórias das nossas aldeias.
Mostrou-nos e explicou: era a chave da casa onde nascera, no princípio do
século, na cidade de Yaffa, à beira do Mediterrâneo. Em 1948 ele e a família
tiveram de fugir devido à violência de grupos terroristas e militares hebreus.
Desses tempos guardava um sonho, o de voltar a usar a chave para abrir a porta
de sua casa e o de tornar a sentir o cheiro da figueira do pequeno quintal, que
então já só existia na sua memória como uma saudade embrulhada em nostalgia e
enrugada pelo tempo. Nunca mais soube desse homem, que pela lei da vida não
está entre nós. Levou consigo o sonho, porque os jovens da família, em omissão
piedosa, lhe esconderam que nem casa nem figueira existiam mais. A gente
selecta da cidade de Telavive que, sobretudo aos fins-de-semana, usufrui
daqueles subúrbios agora chiques, jamais terá sabido da existência daquele
velho, daquela família, da velha casa, da idosa figueira.
Porque ouvi um dia ao grande e corajoso jornalista
israelita Gideon Levi, num encontro em Copenhaga, esta confissão: “vivemos a
menos de 30 quilómetros de um outro povo, dos nossos vizinhos, e não o
conhecemos, não sabemos quem são, o quanto lhes negamos”.
É assim a Nakba, a catástrofe. Um povo espoliado das
suas vidas, dos seus bens, das suas aldeias e cidades pela violência, a
arbitrariedade, a ira, a ganância de uma casta que, dizendo-se iluminada e
portadora de mandatos divinos, se auto proclamou representante de um outro
povo, manchando e ultrajando a memória das vítimas de uma outra catástrofe, o
holocausto cometido pelos nazis.
A Nakba é uma limpeza étnica permanente, sistemática,
cometida por quem tem a noção absoluta do que está a fazer, isto é, a
substituição metódica, fria, de um povo por outro com base em ordens divinas
que, em boa verdade, deus algum que hipoteticamente exista pode emitir porque a
Nakba é coisa de homens sem escrúpulos, sem alma, sem uma réstia de
sentimentos, como um qualquer carrasco de um campo de concentração nazi.
Uma limpeza étnica cometida, hora a hora, dia a dia,
ano a ano, sob os olhos complacentes e colaborantes dos senhores que exercem o
seu domínio sobre o mundo, chamem-se Estados Unidos da América, União Europeia
e outros entes tão bem falantes quão mentirosos, que por isso se equiparam aos
que praticam a chacina.
O drama é nosso contemporâneo, contudo não é gritado
nas primeiras páginas dos jornais, gorjeado pelas vedetas das TV’s, cantarolado
ante os microfones das rádios, e quando há excepções – porque as há –
reconheçamos a coragem, a verticalidade, o bem da honra de quem as assume.
O drama é nosso contemporâneo. Não é obra do povo
hebreu; não é obra dos povos dirigidos pelos cúmplices dos que se dizem
condutores do povo hebreu. Saibamos distinguir os responsáveis e as
responsabilidades para que venha a ser feita justiça.
Porque justiça terá de ser feita, se justiça ainda
existe. A Nakba existe; é um crime contra a humanidade.
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