Para os que
viveram o 25 de Abril em Portugal e têm assistido à vingança contra a revolução,
posta em prática sobretudo no decorrer dos últimos 35 anos, as ilusões há muito
se esfumaram. Quando se observa o desmantelamento sistemático de um país
arrasando a economia, saldando o bem público, alargando as desigualdades,
submetendo a soberania nacional a ordens emanadas do estrangeiro em desfavor
dos portugueses, tudo isto em nome da democracia, da liberdade e da modernidade,
a simples tentativa de cultivar ilusões mais não é do que uma cedência à
passividade e ao conformismo.
Nada de
ilusões, porque nada há de mais desmotivador que a desilusão. Mesmo dando o
devido valor à tomada de posse de um governo nascido da reintegração na esfera
das decisões de alguns partidos que o sistema de vingança funcionando desde a
década de oitenta segregou e tentou condenar ao pariato eterno; mesmo ouvindo o
novo primeiro-ministro falar de Abril perante o rosto agoniado do chefe do
Estado; ou anotando ainda a sua intenção – que me pareceu genuína – de recuperar
as pessoas e a cidadania para o processo político como caminho para as poupar
aos efeitos mais cruéis do regime do mercado; ou registando até o seu
proclamado empenho em restaurar direitos e práticas sociais que têm sido
feridas quase de morte pelo sistema de governo gerido pelo ganancioso patronato
interno e externo. Qua não haja ilusões, dentro de uma perspectiva realista e
preventiva, mas se cuide de uma esperança, agora justificada, porventura capaz
de abalar e desinstalar um sistema degenerado, na verdade ilegítimo, ofensivo
da Constituição da República e que deixou Portugal de rastos.
Foi este
sistema que nas últimas três décadas e meia se instalou e esbanjou milhares e
milhares de milhões de escudos e euros em obras faraónicas com duvidoso e fugaz
prestígio gerando penosas inutilidades ou, quando privatizadas as que se
tornaram rentáveis, proporcionando insultuosas fortunas a meia dúzia de
ex-ministros, ex-administradores, ex-qualquer-outra-forma-de-poder. O mesmo
sistema que abriu portas à folia criminosa da banca, a seitas de alta corrupção
à custa da delapidação dos bens comuns e de grandes negócios de compadres e
famílias cujos principais responsáveis, provavelmente, nunca serão punidos por
uma questionada justiça, que mal terá desbravado ainda a ponta de um monstruoso
iceberg. O mesmo sistema ainda que transformou a política numa serviçal das
manigâncias da economia, dos assaltos da finança, sonegando simultaneamente aos
portugueses o direito democrático básico de poderem pronunciar-se sobre adesões
forçadas a entidades como a União Europeia e a tratados e moeda que submetem os
interesses dos cidadãos às vontades e arbitrariedades de grandes potências
políticas e económicas – tal como já acontecera com a NATO no tempo do outro
senhor.
Foi este
insaciável sistema que, ao inventar “a crise” para institucionalizar a austeridade inventou igualmente aleivosias
como a de “vivermos acima do que podíamos”, sermos uns “madraços” e “preguiçosos”
meridionais incapazes de compreender os segredos estratégicos e mágicos da “produtividade”,
olhada esta como o método de cada um por si, salve-se quem puder, o êxito é
chegar ao topo espezinhando quem aparece no campo de batalha em que se
transformou a sociedade, onde todos os meios são permitidos para atingir os
fins.
Nada de
ilusões, à cautela, mesmo quando o novo primeiro-ministro promete um “tempo
novo” e o define segundo intenções, atitudes e comportamentos que põem de facto
em causa a linha vigente nos últimos 35 anos. Um primeiro-ministro que fala em
pessoas, solidariedade, direitos, inclusão, serviços públicos dignos, respeito
pelo trabalho, coisas que surgem tão fora do registo até agora em vigor que,
mal terminado o discurso de posse, já da pocilga da propaganda a que chamam
comunicação social saía um “comentador” tomando as dores dos mais inquietos com
as perspectivas de mudança, sentenciando que “não se deve demonizar o mercado”
porque “o mercado somos todos nós”.
Árdua vai
ser a tarefa do novo governo, que requer a solidariedade e a mobilização actuante
de todos quantos se identificam com a maioria democrática gerada na Assembleia
da República e que o sustenta. Para que o “tempo novo” se afirme e se reflicta
na vida da esmagadora maioria dos portugueses espoliados, humilhados,
insultados durante os últimos 35 anos, negros para um país que se gaba dos mais
de 800 anos de história. Para que “o tempo novo” seja também um tempo de
restauração da dignidade das pessoas que vivem em Portugal, imigrantes e
refugiados incluídos, e dos portugueses que, gerações atrás de gerações, foram
obrigados a emigrar; um tempo de coragem e afirmação soberana das vozes que
terão de fazer ouvir-se nas instâncias internacionais, principalmente nas da
União Europeia, invocando os direitos e interesses das pessoas e não
papagueando instruções dos chantagistas financeiros, acenando servilmente
perante as ordens dos imperadores económicos. Vozes serenas mas firmes e
dignas, com a certeza de que nesses areópagos as relações são entre iguais e,
por isso, não há lugar para professores nem para alunos - bons ou maus alunos.
Que não se
cultivem ilusões mas, posto o que ficou escrito, penso ter sido restaurado em
Portugal um recanto para a esperança e para retirar a democracia no lodo em que
quase a asfixiaram.
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