A tese de que os resultados das eleições gerais em Portugal
aumentaram a confusão política é própria daqueles para quem a confusão
política, associada à falta de transparência, à austeridade, aos arranjinhos de
bastidores e às análises em torno de ficções são o modo de vida. Os resultados
são muito claros para quem os quiser ler e, sobretudo, para quem tiver a
coragem de assumir responsabilidades deles decorrentes e enfrentar o status quo, que se resume a um conceito
falacioso e ilegítimo - o de arco da governação.
Portugal apenas caiu na ingovernabilidade para aqueles que
entendem a política parlamentar e executiva em versão única e totalitária, a
das combinações estatísticas possíveis entre três partidos ditos “responsáveis”,
“moderados”, “europeístas” – seja lá o que isso for – em suma, fadados para
governar. Como se os 230 lugares no Parlamento não tivessem todos o mesmo valor
e alguns deputados fossem “mais iguais” do que outros. Não há políticos da
elite e os outros; não há coligações políticas proibidas à partida porque
desagradam ao mercado ou aos senhores e senhoras de Bruxelas, Washington ou
Berlim; não há qualquer ilegitimidade na procura de novas plataformas de
governação. O que é ilegítimo é a perpetuação do “arco da governação” a todo o
custo, incluindo a falsificação da vontade dos eleitores. Não existem
coligações negativas, partidos do poder e partidos da contestação, todas essas
patetices não passam de máscaras da mesma coisa, o poder absoluto e a política
única em vez de democracia e pluralismo.
O que os eleitores portugueses fizeram, apesar do cenário de
medo, terror manipulador e viciação das explicações da realidade que os envolve,
foi arejar o ambiente democrático, dizendo aos dirigentes políticos que há mais
caminhos que o do costume, assim eles queiram e tenham coragem para os procurar.
O que os eleitores portugueses transmitiram, corajosamente, repete-se, foi a
mensagem de que existem alternativas aos obscuros jogos de poder praticados por
uma casta de supostos iluminados através de tabus, recados cifrados, ciências
ocultas e outras manigâncias para manter os cidadãos à margem dos assuntos que
decidem as suas vidas, como se estes fossem idiotas incapazes de saber o que
desejam e a quem é preciso corrigir quando não votam como querem os que se
acham donos disto tudo.
Um dos exemplos mais crus desse vício manifestou-se nas noites
eleitorais das televisões generalistas, onde os exercícios de análise e
futurologia se mantiveram agarrados à ficção das sondagens até ao último
suspiro de sapiência dos convidados, enquanto os resultados reais e oficiais
corriam em rodapé dos ecrãs a alta velocidade, tantos deles desmentindo,
através de um golpe de vista possível, deturpações reles e primárias baseadas
em conjecturas – essas sim confusas e mistificadoras – disparadas sobre os
espectadores. Quantas palavras se gastaram, quantas ditirâmbicas declarações se
fizeram elogiando a suposta diminuição da abstenção quando, afinal, a afluência
às urnas caiu dois pontos percentuais, votando menos 180 mil pessoas do que em
2011, apesar de haver agora mais 10 mil inscritos.
Porque a realidade se perdeu no ruído e na névoa das elucubrações
inspiradas na ficção, para criar a confusão da qual seja suposto não nascer a luz,
recupero alguns factos numéricos com inegável valor político.
A mediaticamente venerada coligação governamental, declarada
vencedora em processo sumário, perdeu 730 mil votos e mais de um quarto do seu
eleitorado – 26 por cento dos seus votantes de 2011 esfumaram-se, isto é,
agarraram no boletim de voto e fugiram a sete pés do terror austeritário e da
ditadura da troika. A sua tranquila maioria governamental de 132 deputados, mãe
de todas as arbitrariedades, de todas as violações dos direitos das pessoas,
resume-se agora a uma minoria de 107, um corpo parlamentar emagrecido em 19 por
cento. A coligação PaF (PSD+CDS), aliás, não conseguiu atingir sequer a votação
simples do PSD em 2011; faltaram-lhe 78 mil votos e o resto foi como se o CDS, que
valera mais ou menos 650 mil votos em 2011, se tivesse evaporado.
O “fragorosamente derrotado” PS, cuja prestação, de facto,
foi tudo menos brilhante, cresceu, no entanto, em número e percentagem de votos.
Obteve mais 182 mil, equivalentes a uma subida de quase 12 por cento. Foi
escasso para os objectivos proclamados, foi muito curto para quem almejava o
primeiro lugar – o que as circunstâncias sociais justificariam – mas não deixou
de ser um crescimento à luz fria e indesmentível dos números. Assim os seus
dirigentes o usem a bem das causas sociais e humanitárias que dizem defender.
Os partidos a quem a propaganda do regime e os que
abusivamente dele se apropriaram recusam a legitimidade para governar,
cresceram com uma consistência que não deixa dúvidas nem confusões. O Bloco de
Esquerda foi recompensado por uma campanha muito inteligente e de uma grande
eficácia na transmissão das suas propostas: cresceu 110 por cento em número de
votos e de 8 para 19 deputados, expressiva demonstração de que a política agarra
as pessoas quando deixa de ser tratada como uma coisa doutoral só ao alcance de
quem manda; a CDU, vítima dos velhos hábitos de marginalização e difamação
mediática, também cresceu, apesar disso e das distorções à volta da falácia do “voto
útil”: mais um deputado, de 16 para 17, e mais 3400 votos.
Contas feitas, incorramos numa heresia que tanto incomoda os
comentadores regimentais, pelo simples facto de aritmeticamente ser passível de
concretizar. O PS, o Bloco de Esquerda e a CDU somaram mais 446 mil votos que
em 2011 e atingiram 50,9 por cento do universo votante, obtendo uma maioria
absoluta de 122 deputados (mais 24 que em 2011, correspondentes a 53 por cento
do hemiciclo e seis lugares a acima do necessário para governar em maioria).
A leitura política deste resultado não se presta a confusões,
porque deixa bem clara a existência de uma maioria absoluta dos partidos
parlamentares que se têm declarado contra a austeridade. Ao contrário da versão
“oficial” sobre o que é legítimo ou não, estes partidos têm o direito – e o
dever agora imposto pelos eleitores – de pelo menos se sentarem a negociar de
boa-fé uma possível plataforma de governo. As pressões internas e externas
serão muitas, parecerão insustentáveis, mas as transformações políticas capazes
de repor direitos civis, sociais e económicos, de respeitar as pessoas e de
abolir os efeitos do trágico ciclo da austeridade apenas serão alcançáveis com
a coragem correspondente à que ficou estampada na votação dos cidadãos
portugueses. Prometer é fácil, ter ideias é meritório, passar tudo isso à
prática é difícil, mas não viola qualquer norma democrática, pelo contrário,
seria o regresso à democracia, tal como os eleitores exigiram.
Uma coisa é certa: os que têm governado e se consideram
donos do país e dos portugueses perderam a legitimidade para continuar as
malfeitorias. Só conseguirão legitimidade para o fazer se alguém lhes estender
a mão – e se tal acontecer os responsáveis serão fáceis de identificar. Não é
de somenos anotar que o chamado “arco da governação” perdeu bastante mais de
meio milhão de votos (550) mil, uma erosão de 12,6 por cento e de 13 deputados.
Tem a sua versão de maioria absoluta, é certo, mas contra natura, apesar de
habitual, porque associa os esbirros da austeridade com parte dos que
alegadamente a contestam.
Os resultados eleitorais não deixaram espaço para confusões.
As organizações políticas ao serviço do terror austeritário perderam a maioria
e já não podem fazer o que lhes apetece.
Entre os aplicantes da austeridade e os que garantem combatê-la
houve uma inversão da relação de poderes, agora claramente favorável aos que se
recusam a continuar uma política de violação dos direitos humanos e da
democracia. Se estes se juntarem e, em vez de se debaterem com as armadilhas
dos que os atiçam por causa de diferenças legítimas e naturais, fizerem do que
os une um programa de governo, então nem o Presidente da República, por muito
que esprema as meninges, poderá rejeitá-lo.
Sem comentários:
Enviar um comentário