Apesar dos exorcistas, dos falsificadores da História e dos
eternos salazarentos ora travestidos de democratas com via única, a verdade é
que a revolução de 25 de Abril de 1974 abriu muitas portas em Portugal, e até
no mundo. A porta da democracia, a porta da liberdade, a porta do
desenvolvimento de um povo antes submetido às amarguras da escravidão, a porta
da descolonização. Foram as portas que Abril abriu, cantadas pelo imortal José
Carlos Ary dos Santos - poeta cuja obra, o talento e o poder das palavras o
regime tem soterrado no situacionismo da cultura de bordel.
Não sei que frutos poderão dar as diligências em curso para
encontrar um governo capaz de aplicar uma política alternativa à chacina
social, ao holocausto da democracia instaurados pelos partidos herdeiros do
passado autoritário, aggiornate pela
ditadura financeira da União Europeia. Admito, porém, que o Ary esteja contente,
como satisfeitos deverão sentir-se os democratas autênticos, porque vivemos um
exercício de democracia verdadeiramente pluralista através da procura de uma
convergência de interesses que possa corresponder aos anseios da esmagadora maioria
dos portugueses, mesmo de muitos que, embalados pelas palavras venenosas da
ex-maioria, se deixaram burlar mais uma vez.
O exercício da democracia foi uma das portas que Abril abriu
e que uma fileira de políticos submetidos a ordens forasteiras foram encerrando
paulatinamente, para dar espaço a uma forma tumoral de governação, uma degenerescência
da democracia original. Chamam-lhe “arco da governação”, “bloco central”, “compromisso
de centro-direita” e outras aleivosias atrás das quais se disfarça um conceito
singular: a política de direita exercida como democracia única, uma forma de
autoritarismo talvez ainda benévola, mas susceptível de endurecer ao compasso
das resistências à arbitrariedade da casta dominante.
Já percebemos que a simples reabertura da porta da
democracia provocou uma tempestade no sistema instalado. O que se diz, escreve,
mente e atemoriza sobre as negociações e eventual entendimento entre o PS, o
Bloco de Esquerda, o PCP, os Verdes e o PAN, que somam uma inquestionável
maioria absoluta de 123 deputados numa Assembleia de 230, deveria passar a
figurar em todos os tratados de manipulação, má-fé e até ignorância política.
Desde ser “ilegal” porque “deverá governar quem teve mais votos” e menos
deputados, até à entronização governamental de uma minoria em nome da
estabilidade e ao argumento de que o país estaria a “desafiar” a União Europeia,
o terrorismo ideológico tomou conta do povoado. Antes a troika que tal sorte, escrevem
uns; “o gonçalvismo está de volta”, gritam outros, alguns dos quais sem fazerem
a mínima ideia do que falam; o “arco da governação” é a “solução natural”,
pregam em uníssono o cardeal de turno e o ex-ministro das Finanças que chamou a
troika e ex-patrão da Bolsa, dando de barato que o Estado é laico e os
interesses da grande maioria dos portuguesas e os do casino dos especuladores são
divergentes.
No meio dos lugares comuns da propaganda mais boçal vão
surgindo as mensagens elaboradas, logo ainda mais sinistras, daquelas que bebem
do fino de Bilderberg, de Washington e Bruxelas, porém muito progressistas,
prafrentex e “independentes”. Pede-se a mudança do sistema eleitoral para que a
Assembleia da República esteja aberta apenas ao “arco da governação”;
alvitram-se mais poderes para o Chefe do Estado, de modo a que este possa
corrigir, a qualquer momento, desvios preocupantes para a ditadura do dinheiro;
invocam-se os “compromissos internacionais” como troncos a que cada cidadão
português seja amarrado para salvaguarda dos interesses dos que piratearam a
democracia.
Negociar um governo alternativo, porém, é a essência da
democracia, é o respeito pela vontade maioritária dos portugueses. Dos
portugueses que não aceitam a austeridade, que estão fartos que lhes confisquem
os salários, subsídios e pensões, que estão saturados de pagar fortunas para
que os banqueiros possam continuar a esbanjar e a atafulhar paraísos fiscais. Dos
portugueses que exigem direitos associados ao trabalho, que desejam horários
laborais compatíveis com a cidadania e as vidas familiares, que pretendem o
reforço dos investimentos - e não a penúria crescente - na saúde, na educação,
na cultura, nas pescas, na agricultura, na restauração da economia. Negociar um
governo alternativo é estancar a sangria das famílias e dos cidadãos vítimas da
emigração; é deixar de ser carne para canhão dos agiotas que fazem a guerra aos
povos manipulando as dívidas soberanas com os cordelinhos viciados de Bruxelas.
É difícil reabrir esta porta de Abril, talvez a mais
essencial de todas elas? Mais duro é viver atascados no pântano social que nos
criaram.
Estimado José Goulão, é com muita satisfação que reencontro, agora neste blogue, as tuas análises despoluidoras que tanta falta fazem nas televisões e nos jornais.
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