Sabemos que o primeiro-ministro português ainda em exercício,
fiel ao seu lema Portugal atrás e os portugueses em último lugar, considera a
soberania uma “batota”, como declarou no debate televisivo com o seu principal
rival nas eleições. “Batota” pensar em primeiro lugar na vida dos portugueses, que
deve submeter-se antes aos mecanismos do euro e às exigências dos agiotas; “batota”
agir em primeiro lugar na defesa da economia portuguesa e só depois pesar os
interesses dos alemães ou de quaisquer outros; “batota”, enfim, ser o Estado
português a elaborar e aprovar o seu próprio orçamento e não a Alemanha e
outros por ela.
De modo que o orçamento de Estado para 2016 caiu em cheio no
período de negociações sobre o próximo governo como recado fundamentalista dos autocratas
da União Europeia, exigindo que o país não mude de política. Digamos que, sob a
capa de um calendário quiçá “irrevogável”, a Comissão Europeia pediu ao
minoritário governo em funções em Portugal que envie para Bruxelas
imediatamente – e já está atrasado – um projecto de orçamento com base na
continuação das mesmas políticas, sem qualquer alteração. Estipula ainda a
Comissão Europeia – em boa verdade constituída por cavalheiros e cavalheiras que
ninguém elegeu em parte alguma, a não ser a fazer de conta no Parlamento
Europeu – que se porventura vier a existir um outro governo este envie as suas
alterações ao projecto orçamental, sujeitas à decisão final da mesma Comissão.
Em defesa das suas exigências, os senhores e senhoras de
Bruxelas vão brandindo instrumentos por eles mesmos cozinhados para,
imagine-se, combater a crise, como o “two pack”, o “semestre europeu”, o “tratado
orçamental”, coisas de que o cidadão comum é vítima desconhecendo sequer que
existem, e muito menos as respectivas consequências, porque foram escamoteados
da opinião pública com ratificações à sorrelfa e redigidos num europês
tecnocrático apenas ao alcance dos austeritários que os produziram e poucos
mais.
Pois se julgavam que Portugal era um país soberano, tirem
daí o sentido. Os portugueses foram a votos, deixaram a maioria em minoria, seguem
com alguma ansiedade um processo de negociações capaz de traduzir essa decisão
em governo, mas em Bruxelas é como se nada tivesse acontecido e os eleitores
não existam. O que Lisboa tem de fazer, para que assim se cumpram as normas
europeias, é submeter o orçamento do Estado às instâncias da União elaborado
como se não tivesse havido eleições e a minoria continuasse a ser maioria.
Se por um qualquer bambúrrio se formar em Lisboa um governo
discordando desse projecto de continuidade, o que tem a fazer é enviar para
Bruxelas as propostas de alteração, que certamente não tardarão no lixo se
contrariarem a continuidade austeritária. Assim funciona o diktat de Bruxelas,
melhor será escrever o diktat de Berlim.
Em Portugal, os situacionistas da crueldade social em que se
vive continuam a fazer suas as ordens de Bruxelas, como as eleições tivessem
sido de faz-de-conta. Formar um governo reflectindo a nova composição do
Parlamento será “um golpe de Estado”, um “atentado contra a nossa vocação
europeia” ou, como diz aquele indivíduo para quem não há almoços grátis, será o
mesmo que produzir “uma enorme quantidade de irrealismo”.
Cada cidadão português, como cada cidadão de qualquer país
da União Europeia, deve ter a noção de que Bruxelas exerce um poder de
chantagem e de veto sobre as suas vontades e decisões expressas da maneira mais
democrática que existe, o voto.
As decisões dos cidadãos, por definição de democracia, são
soberanas. Isto é, sobrepõem-se também aos compromissos internacionais se estes
forem obstáculos ao respeito pela vontade maioritária. Com estas palavras não pretendo
defender que os compromissos internacionais sejam para desrespeitar por dá cá
aquela palha. Os compromissos internacionais, porém, não são tabus inamovíveis
aos quais se sujeitem valores fundamentais do ser humano. Tal como as dívidas,
são negociáveis e reajustados quando existe uma vontade democraticamente
legitimada para o fazer. Esse é o papel dos governos.
A isto chama-se soberania; submeter-se a diktats não é
soberania; pior do que batota, é reles sabujice.
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