O governo da República Portuguesa, actualmente em fase de
mera transição, ficou indisposto com as recentes estatísticas sobre o
desemprego, isto é, custou-lhe a provar do seu próprio veneno. As quais
estatísticas, como se sabe, lhe são muito favoráveis porque mascaram – não por
culpa dos técnicos responsáveis – uma realidade bem mais grave que os
anunciados 12,4 por cento. Estes números escondem o elevadíssimo número de
cidadãos chamados “desempregados de longa duração”, que nem sequer estão
registados nos centros de emprego e muitos deles já nem procuram trabalho;
omitem as percentagens escandalosas de trabalho precário, uma actividade
esclavagista que vale como emprego, atacando forte e feio a dignidade do
trabalho e do trabalhador; e remetem para outras parcelas estatísticas o quase
meio milhão de portugueses que, durante os últimos quatro anos, tiveram de
fugir do país – seguindo, aliás, as sugestões do primeiro-ministro em exercício
– para matarem a própria fome e a dos seus.
Mesmo assim, o governo queixa-se. Queria, por certo,
estatísticas ainda mais marteladas para poder jogar com elas manipulando os
eleitores a menos de dois meses de eleições gerais.
O episódio é exemplar sobre o regime em que vivemos, não
apenas em Portugal mas em toda a União Europeia. O regime dos números contra as
pessoas, a vigência de uma realidade paralela que não poucas vezes, cozinhada com
a propaganda, deturpa e mistifica a vida real. Misturem-se estatísticas com
sondagens, temperem-se com doutos debates, sábias palestras e as irrepreensíveis
conversas em família dos sociólogos e sabichões oficiais da nação e teremos um
caldo de números que, se for preciso, nos faz ver o mundo ao contrário.
Não castiguemos os mensageiros por tão perversas mensagens.
A culpa não é de quem elabora as estatísticas, de quem faz os trabalhos de
campo nas sondagens. Obter números e empacotá-los em gavetas informáticas não é
pecado. O problema está na maneira como essas gavetas são arrumadas e os seus
conteúdos politicamente interpretados.
O ultraje existe no facto de um primeiro-ministro esgrimir
com um décimo a mais ou a menos de um índice de desemprego quando as pessoas e
as famílias atingidas por essa décima não lhe merecem o mínimo respeito, como
se não existissem. O crime está no facto de uma décima a mais ou a menos numa
sondagem poder vir a ser usada pelos que se acham com o direito eterno a
governar como pretexto para refinar mentiras pré-eleitorais que depois se
transformarão em aldrabices governamentais.
O regime em que vivemos, o do neoliberalismo – palavra que
os praticantes começam a ter pudor em pronunciar – é o dos números. O regime
dos números absolutos e muitas vezes virtuais contra as pessoas reais. É o
sistema da frieza aritmética contra os direitos humanos.
Os números das estatísticas e das sondagens são armas de arremesso
usadas pelo chamado “arco da governação” contra os cidadãos, o artifício de
transformar as pessoas num imenso rebanho acéfalo conduzido por pastores
tecnocratas que agem como burros à volta de uma nora.
Transformar um dado estatístico ou o resultado de uma
qualquer sondagem num tema crucial de debate é um comportamento perverso, utilizado
para desviar a política para os terrenos virtuais, furtando-a à discussão dos
assuntos que dizem respeito às pessoas reais.
As estatísticas e as sondagens tal como são usadas pelos
políticos dominantes são imitações reles da democracia. E há muito que o Sérgio
Godinho nos adverte: cuidado com as imitações!
"Que continuemos a nos omitir da politica é tudo o que os malfeitores da vida pública pretendem". Bertolt Brecht
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