Uma advertência prévia: onde se lê acordo 5+1 com o Irão
deve ler-se acordos; onde se lê 5+1 deve ler-se Estados Unidos, quanto muito
mais a Rússia e a China, a ver vamos; quando se relaciona unicamente o
resultado das negociações com o fim da suposta ameaça nuclear iraniana toca-se
apenas num átomo de uma estrutura complexa e de grande envergadura.
Isto é, esqueça o que os telejornais sintonizados com
Washington e demais centrais de propaganda lhe explicam sobre o acordo e vamos
à realidade.
O Irão nunca representou, pelo menos a partir de 1988,
qualquer ameaça nuclear militar. O mito foi inventado para usar com mil e um
pretextos e servir, em última análise, as estratégias militaristas e
expansionistas de Israel, além de jogar com os preços do petróleo conforme os
interesses do sistema económico e financeiro global. Desde a fatwa (decreto
religioso) emanada em 1988, ainda pelo imã Khomeiny, que o Irão renunciou à
utilização da energia atómica para fins militares. O resto é ficção e
propaganda.
Os acordos agora estabelecidos trazem no bojo intenções
muito mais amplas e estruturantes que apenas tocam ao de leve na falsa questão
nuclear iraniana, embora esta seja exacerbada para esconder o que foi decidido
pelas principais partes envolvidas, os Estados Unidos da América e o Irão: uma
partilha de influências no Médio Oriente ampliado, envolvendo pois a chamada
Eurásia, capaz de permitir ao Pentágono transferir o núcleo duro do seu
impressionante aparelho de guerra do Médio Oriente para a Ásia, posicionando-se
ante os novos inimigos, a China e a Rússia.
Isto é, através destes acordos os Estados Unidos contam com
uma pacificação do Médio Oriente mediante novas esferas de influência por eles teórica
e implicitamente determinadas, abrindo terreno para reposicionamentos
estratégicos.
Pode e deve perguntar-se: assim sendo, como é que a Rússia e
a China foram nisso? Esta é a grande interrogação, embora não seja de excluir
que os arranjos encontrados no quadro de um novo Médio Oriente também lhes
interessem e permitam ganhar tempo. Sabe-se que as derradeiras dificuldades
existentes antes de serem anunciados os acordos foram levantadas pela Rússia,
que não está disposta a transformar-se no alvo principal do Estado Islâmico,
transferido presumivelmente das terras árabes para o Cáucaso. As primeiras
reacções de Putin, salientando que o mundo agora respira melhor, podem
significar que as suas principais exigências foram atendidas, mas os acordos
são apenas papéis.
Há ainda a histeria manifestada por Israel, deve dizer-se
antes, pelo primeiro ministro de Israel. Porque em Israel, na esfera militar,
há quem conheça muito bem os acordos e os aceite. São, aliás, os mesmos
sectores, responsáveis do Mossad incluídos, que há longos meses vinham
desautorizando o chefe do governo quanto às supostas ameaças nucleares iranianas.
Daí que o tempo de duração de Netanyahu à frente do governo israelita seja, a
partir de agora, uma pedra de toque para avaliar o funcionamento dos novos
arranjos.
Em termos gerais, os Estados Unidos e os seus principais
aliados no Médio Oriente, leia-se Israel e Arábia Saudita, têm como zona de
influência as petromonarquia da Península Arábica mais o Iémen e respectiva
ponte para o Corno de África, a Jordânia, o Egipto e a Palestina – o acordo
prevê que o processo de Oslo seja retomado, outra medida que deixa Netanyahu
fora de si. O Irão, que se compromete a “não exportar a revolução”, mantém as
suas influências na Síria, no governo iraquiano instalado em Bagdade e nas
correntes islâmicas mais intervenientes no Líbano, devendo o Hamas adaptar-se
ao que seja estabelecido em relação à Palestina.
Nos termos destes arranjos, o Curdistão Iraquiano
tornar-se-á independente como satélite de Israel, país que deverá tutelar, em última
análise, o aparelho militar da Liga Árabe, entidade que ficará na esfera
norte-americana.
A Turquia, um dos grandes perdedores nestes arranjos, a
Arábia Saudita e o Qatar deverão abster-se de apoiar o Estado Islâmico, o que,
teoricamente, repete-se, deveria implicar a pacificação da Síria e o respeito
pelo mandato de Bachar Assad. O corte dos apoios aos mercenários islâmicos
deverá ter como resultado a sua neutralização pelos exércitos iraquiano e sírio
e, ao mesmo tempo, impedir a transferência do grupo para o Cáucaso, exigência
de Moscovo que fez arrastar o fim das negociações. Os Estados Unidos e Israel
resistiram até onde lhes foi possível para conservar esse instrumento
terrorista, de preferência orientado contra Moscovo, como já acontece na
Ucrânia, sabendo-se que os árabes têm vindo a ser substituídos por caucasianos
na direcção operacional dos mercenários. Aparentemente, Washington e aliados
cederam, mas até onde e quando?
Com o fim das sanções, o petróleo e o gás iraniano vão
inundar o mercado e, por certo, substituir exportações russas para a Europa.
Moscovo considera que os efeitos desse problema são temporários, até estarem
concluídos os gasodutos que irão atravessar a Ásia, sobretudo em direcção à China;
enquanto isso, o Irão, livre de sanções, e a Arábia Saudita perfilam-se como
grandes clientes económicos da Rússia, sobretudo no domínio militar. Os contactos
entre Moscovo e Teerão são intensos, as encomendas volumosas, e o rei da Arábia
Saudita é esperado em breve na capital russa, uma visita que ouviremos
certamente qualificar como “histórica”.
Em traços gerais, eis o que ficou acordado num processo de “pacificação”
do Médio Oriente que, em Washington, é olhado como garantia da estabilidade
regional num período de pelo menos 10 anos.
O cotejo entre os objectivos enumerados e a realidade
permitir-nos-á aferir de que modo se cumprem, ou não, as vontades e os cálculos
desta geração de dirigentes muito mais habituada à guerra e ao terrorismo que à
diplomacia – ainda que enviesada como a que estes acordos ilustram.
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