O Ministério britânico do Interior teve uma espécie de
rebate de consciência. Uma ousadia propagandística insuficiente, tardia e que,
no limite, tem o efeito perverso de uma prática enganosa.
Decidiu o aparelho policial e de segurança às ordens do
senhor Cameron, por delegação de Sua Majestade, lançar uma campanha contra
aquilo a que chamou a “escravatura dos tempos modernos”, campanha essa
destinada a sensibilizar para os abusos contra os direitos humanos cometidos
por redes que traficam pessoas para serem exploradas na prostituição, ou no
serviço doméstico ou em alguns trabalhos clandestinos, designadamente em
actividades rurais.
Este tráfico é uma realidade nua e crua em todos os países
da União Europeia, e outros ditos civilizados; ora se o governo do senhor
Cameron organiza uma campanha a propósito de tais aberrações, aparentemente
manifesta o desejo de ir mais longe que todos os seus homólogos, os quais
assobiam para o ar porque as suas preocupações são outras e bem mais
importantes, por exemplo ajudar os credores a especular em liberdade com as
dívidas soberanas.
Claro que o senhor Cameron se limita a uma campanha de
sensibilização, como quem pede “meus senhores e senhoras, por favor sejam
gentis, não explorem tanto essas pessoas, é chato e pode dar mau aspecto”.
Combater de facto esses tráficos de escravos, mobilizando o sistema policial e
de segurança para reprimir e eliminar tais práticas, é objectivo que não
aparece nos horizontes do governo de Sua Majestade. O mais certo é que depois
de esgotado o prazo de validade da campanha tudo continue na mesma e sejam
marteladas mais umas estatísticas dando contas de supostos êxitos tão
transitórios como esta inócua inquietação perante crimes abomináveis.
A campanha não passará, na verdade, de um exercício de
propaganda. O tráfico de seres humanos que se pratica na União Europeia, e em
todo o mundo dito civilizado, não é mais do que um fruto da mentalidade
dominante, que coloca o lucro e os negócios acima das pessoas e dos direitos
humanos. A “escravatura dos nossos dias”, para usar a expressão escolhida pelo
Ministério britânico do Interior, não se resume ao funcionamento de redes
clandestinas que comercializam pessoas para serem exploradas até aos limites
das suas capacidades e resistências. As migrações não desejadas por quem é
obrigado a sujeitar-se-lhes, por razões de sobrevivência, traduzem um tráfico
encapotado, são uma forma de escravatura de sempre - e também de hoje. E que
dizer do trabalho precário, dos despedimentos a eito, dos salários miseráveis e
em redução permanente, da abolição de pensões e subsídios, das cargas horárias
determinadas tão só pela ganância de quem as impõe, protegido pelas
cumplicidades governamentais e legislativas? Tudo isto integra o lote das
práticas de “escravatura moderna” que, além de não serem alvo de quaisquer
denúncias ou campanhas governamentais, fazem parte dos comportamentos tolerados,
encorajados e legislados pelos próprios governos.
O tráfico de pessoas para a prostituição, o serviço
doméstico, a exploração nos campos caracteriza-se por afrontar deliberadamente
as leis, ser clandestino e passível de combate policial, desde que haja vontade
política e humanitária para isso. O facto de outras imposições próximas da
escravatura como o trabalho sem direitos, a chantagem com o desemprego e, no
fundo, “a liberalização do mercado de trabalho” se desenvolverem de acordo com
as leis não as torna menos gravosas ou menos exploradoras. Pelo contrário, faz
dos que as aprovam e permitem tão escravocratas como os traficantes de pessoas.
Com uma agravante: institucionalizando essas práticas impedem que sejam
combatidas ou alvo de campanhas oficiais, assegurando assim a imunidade e a
impunidade aos donos “dos escravos dos tempos modernos”
A campanha do senhor Cameron é um ardil, porque a
escravatura legal “nos nossos dias” é bastante mais insidiosa que a praticada
ilegalmente.
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