Um quarto de século depois da queda do muro de Berlim, a
União Europeia barrica-se atrás de um novo muro. A História reincide, nem
sequer em forma de farsa, como costuma vaticinar-se, mas sim de ausência
absoluta da mais elementar ponta de vergonha. E se o desaparecimento do muro a que
chamaram “da vergonha" apagou as fronteiras que remanesciam da Segunda Guerra
Mundial, o novo muro ergue-se nas vizinhanças dos lugares onde nasceu a
Primeira Guerra Mundial. Quem saiba ler os sinais, que os leia.
É frágil consolo dizer que o novo muro em construção na
Europa, previsto para ter 175 quilómetros de extensão e quatro metros de
altura, é fruto das mentes ditatoriais, reacionárias e medievais dos
governantes actuais da Hungria. A Hungria é e continua a ser membro de pleno
direito da União Europeia, os carrascos dos povos submetidos à austeridade, tão
eriçados quando se trata de pugnar pela ganância dos credores, estão mansos e
em paz perante a obra que nasce na fronteira entre o Estado magiar e a Sérvia.
Para os que não conhecem os factos, tratados com pinças pela
comunicação social ao serviço dos credores, o muro está a nascer em limites
externos da União Europeia, lá onde a Hungria e a Sérvia se separam. A
barreira, que uma vez terminada vedará completamente a fronteira, é justificada
pelos fascistas húngaros no poder pela necessidade de combater a entrada de
refugiados que, oriundos das zonas do mundo mais desgraçadas pelas guerras, a
fome e a rapina, cruzam os Balcãs como outros se perdem nas águas
mediterrânicas, para encontrar um refúgio no espaço europeu.
O muro húngaro não é mais do que a versão materializada das
palavras um dia proferidas pelo director-geral do Frontex ao confessar que esta
instituição europeia securitária e repressiva não tem qualquer preocupação
humanitária e apenas salva alguns náufragos em desespero porque a isso a obriga
o direito marítimo. Aos que chegam da Sérvia e tentarem trepar o muro húngaro
não haverá direito terrestre que lhes valha.
Não vale a pena recorrer ao previsível argumento de que os
húngaros elegeram os fascistas que os governam e estes apenas se limitam a
levar bem à letra a expressão “Europa fortaleza” que define, a preceito, a política
agressiva e insensível dos dirigentes europeus perante os refugiados, gente que
pretende apenas uma vida que não esteja sempre paredes meias com a morte, a
fome e a guerra. Os dirigentes europeus têm Viktor Orban, o ditador fascista
húngaro, como um dos seus. Atribuíram-lhe o petit nom de “o ditador” – como o
presidente da Comissão exemplificou numa das recentes e caricatas sessões de
fotos de família – e usam-no em jeito de piada sem graça, de epíteto brejeiro à
medida de alguém um pouco, digamos, excêntrico. Nada de grave, presume-se.
Institucionalmente, nada acontece. O regime ditatorial
húngaro constrói um muro numa fronteira externa do espaço europeu que viola a
letra e o espírito dos tratados europeus, que espezinha direitos humanos
básicos, que coloca a União Europeia a par dos regimes coloniais e terroristas
de Marrocos e Israel, e nada acontece. Pelo contrário, a atitude complacente de
figuras como a senhora Merkel, ou o senhor Hollande, ou os senhores Renzi e
Juncker é tão silenciosa que dir-se-ia terem dado instruções aos seus
arquitectos e engenheiros para tornarem possível a edificação de um dique no
Mediterrâneo tão competente e estanque como vai ser muro na fronteira da
Hungria com a Sérvia.
O muro húngaro é, no fim de contas, uma obra lógica, uma
consequência natural do estado a que chegou a União Europeia. Harmoniza-se com
a sanha que vitima os direitos dos povos a pretexto das dívidas soberanas, está
sintonizado com o destrambelhamento das medidas avulsas usadas face à crise
humanitária nas águas do Mediterrâneo. E tudo converge na demonstração
inequívoca de como os dirigentes europeus lavam as mãos das suas elevadas
responsabilidades nas guerras, na degradação ambiental, nos problemas de fome e
carência de recursos básicos, na destruição de países e regiões de onde fogem
as multidões que apenas podem ser acusadas do desejo de sobreviver.
Sem comentários:
Enviar um comentário